Me acorde ao amanhecer...

Você nunca mais vai me ver chorar, disse Marilia e desatou num choro sentido. O olhar de Gustavo era meigo. Ele abraçou a moça com carinho e a beijou no rosto delicadamente, enquanto conduzia para o quarto.

Marilia sempre corria pelo parque e um dia se deparou com Gustavo sentado num banco, ela o conhecera ainda no tempo de escola e, desde ali, sempre estiveram juntos; porém, devido ao “novo normal” cada um estava para um lado.

Ele lembrava quando casaram e prometeram viver juntos, dizendo um para o outro, aquela frase clichê que as pessoas apaixonadas dizem ao casar, como se fosse uma espécie de abracadabra para uma vida plena e feliz: “até que a morte nos separe”.

Coincidentemente, não a finitude deles, mas a de milhares de pessoas foi o que os separou.

Ao anoitecer era angustiante, sozinha no apartamento, nem dormia mais na cama, deitando-se no sofá com um copo de whisky e uma carteira de cigarros, que acendia, um após o outro, olhava o noticiário e se arranhava nas costas das mãos e nas solas dos pés, até abrir feridas. Carpidava, noite pós noite, os desconhecidos do imenso cemitério de números e estatísticas mostrados pela TV, até não aguentar mais e cair num sono entorpecido, de imagens desconexas e angustiantes.

Evitava a cama, então vazia, pela falta de Gustavo, como se parece, uma cama arrumada num quarto silencioso, como uma lápide. Uma noite porém, deitou-se no leito e olhou fixamente para o cima, sentindo um medo indescritível, o teto desceu sobre ela sufocando-a ,amassando seu peito. Estava presa em seu próprio túmulo. Debateu-se inutilmente, apertou mais as mãos machucadas pelas arranhaduras, cerrou os olhos, o coração disparou, o gosto do uísque voltou amargo lhe queimando e embrulhando a garganta. Depois disso a silenciosa paz da inconsciência.

Era manhã, percebeu que fora um sonho, sentiu a ressaca moral e do corpo, respirou fundo, pegou o celular e ligou para Gustavo que lhe atendeu de imediato.

-Que foi meu amor? Perguntou Gustavo apreensivo.

-Nada... estou apenas nervosa com tudo isto e você longe de mim, quando você calcula que poderá retornar? Perguntou Marilia, já com os dedos cutucando o calcanhar.

Gustavo trabalhava com vendas e estava em Buenos Aires quando começou a pandemia e de lá não pode retornar. Ele sabia das fragilidades da esposa, sempre que ela lhe ligava ele atendia apreensivo.

A manhã seguiu seu passo lento, com o passar das horas e sozinha, Marilia sentou no sofá, ligou a televisão, acendeu um cigarro, nada a entretinha, apagou o cigarro sem conseguir fumar mais que a metade, pegou um pano e começou a tirar o pó dos objetos em um ritmo frenético, derrubando uma bonequinha de vidro que adornava a estante, presente de seu pai, que ele comprara em Cidreira onde costumavam passar as férias, num distante e quente verão de sua adolescência, o bibelô se partiu no chão e Marília desatou a chorar, olhou pela vidraça, acompanhando com o olhar ainda molhado pelas lágrimas. Um cão sozinho fuçando no lixo. Abriu a porta e o chamou, o animalzinho aproximou-se desconfiado. Ela conseguiu tocá-lo. Todavia, ele voltou a se afastar. Marília entrou em casa, procurando alguma coisa no armário que pudesse oferecer para o cachorro comer. Encontrou umas bolachas colocou numa tigela com um pouco de leite, oferecendo ao animal, ele rapidamente comeu tudo, olhando para ela com seus grandes olhos castanhos, daquela maneira como fazem os cães, enquanto devorava a refeição. Aos poucos começou a sacudir o rabinho, demonstrando que ela podia se aproximar. A moça o abraçou, voltando a chorar, sorrir e chorar.

Mais tarde, perto do meio da tarde, Gustavo ligou para saber noticias e desabafar um pouco, o tom de sua voz denunciava que havia bebido. Marília o questionou, não gostava que ele bebesse por qualquer motivo, que bebesse durante o dia. “Só algumas cervejas”, respondeu com aquele tom de voz que costumava fazer quando queria parecer mais sóbrio do que estava. Reclamou da saudade, do mal humor da mulher que lhe atendeu do supermercado... Marília nem o escutava, estava focada para dentro de si, para Buster. Aliás, contou-lhe do cachorro:

- ...qual o nome?

- Buster.

Durante os dias seguintes ela e o animal passavam juntos as intermináveis horas do isolamento social. O pequeno peludo lhe trazia, de alguma forma, a familiaridade perdida de sua vida: quem era Marília? A Marília que ela pensava conhecer, que crescera a irmã mais velha de três irmãos e pais amorosos, numa casa com cheiro de pão assado à tarde, o violão de seu pai ao entardecer. Depois Gustavo, o amor, a segurança, trabalho, casa, felicidade.

Apertou firme o lenço que estava bordando... “só mais uns dias”

Gustavo chegaria à noite, o marido pediu que o aguardasse, era arriscado pelo vírus ir ao aeroporto.

Estava ansiosa e animada, Buster lhe acompanhava no humor, como se com seus olhos grandes de cachorro pudesse ser o melhor psicólogo. Dr. Buster ela lhe chamava. Tudo voltaria a ser normal, ah... Deus, tudo voltaria a ser como era.

Buzinas em frente do portão, Gustavo chegando de Uber.

Marília saiu correndo - Buster foi atrás, os olhos do animal gritavam alegria - ela abriu o portão e se atirou nos braços do marido, eufórico, Buster não percebeu a moto que dobrava a esquina, o farol da motocicleta o cegou.

Gustavo resolveu tudo em relação ao acidente, colocou Marília na cama e foi buscar um copo d’água, ela o chamou carinhosamente, abraçou o esposo com os olhos embotados em choro e disse: - Não se preocupe, me acorde ao amanhecer.

Gustavo levantou-se cedo como lhe era corrente, preparou um café preto e ligou a televisão, o noticiário falava do sucesso da última fase da vacina. “Amor”, gritou sem perceber que ainda era cedo, “Amor, vem cá”. Então foi até o quarto para acordá-la, tocando o braço da esposa, num misto de alegria e euforia:

- Amor, acorda, a vacina, a vacina...

Marilia?!

lecy cardoso
Enviado por lecy cardoso em 21/10/2020
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