Conto das terças-feiras – O maltrapilho conhecedor de perfumes

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 20 de outubro de 2020

Eu acabara de sair do estacionamento e me dirigia para mais uma seção de tratamento dentário. Isso acontecia duas vezes por semana, as segundas e quartas-feiras. Ao alcançar a metade da distância do consultório do dentista, ouvi de um senhor, maltrapilho, cabelo desalinhado, barba já alcançando o peito, sentado e encostado na parede de um velho depósito, a seguinte palavra:

— Malbec!

Embora eu tenha entendido o que aquele senhor dissera, continuei o meu caminhar, estava atrasado. Passados dois dias, novamente estava eu fazendo o mesmo percurso, exatamente na mesma hora de sempre, quando avistei o senhor sentado na calçada, na mesma posição que o vira na segunda-feira:

— Essencial, da Natura, mais caro que Malbec!

Novamente me veio aquela curiosidade bizarra. Como uma pessoa naquele estado conhecia perfumes simplesmente pela fragrância? Como estava com pressa continuei os meus passos rumo ao sacrifício, a extração de um dente para um implante. Minha curiosidade sobre aquelas intervenções era porque eu estava usando, em cada ocasião, os perfumes reconhecidos por aquele senhor.

Na segunda seguinte, para testar até onde ia o excêntrico conhecimento do entendido em perfumes, passei sobre o meu corpo, levemente, por ter forte fragrância, J’adore de Dior, o perfume preferido de minha esposa. Ao passar pelo homem da calçada, ele levantou-se e bem próximo a mim, como querendo aguçar o seu olfato, como se duvidasse do que estava sentindo, suspirou forte e exclamou:

— J’adore de Dior!

Depois, sentou-se e começou a chorar. Naquele dia parei ali, a emoção tomou conta de mim e impedia-me de ir à clínica dentária. Queria saber que recordação o meu, ou seja, o perfume de minha esposa trazia àquele homem sofredor. Sentei-me ao seu lado, esperei que ele retornasse ao seu normal, isto é, parasse de chorar, ficasse calmo, e perguntei se queira conversar. O homem me olhou com estranheza, mas balançou a cabeça afirmativamente.

— Qual o seu nome? Depois de alguns minutos calados, ele respondeu:

— Eu não tenho mais nome. Chamam-me de Alemão, por causa da cor de meus cabelos e rosto. Não me importo com isso. Atendo, pois sempre é para me oferecerem comida ou roupa.

— Como você chegou a essa situação? Você é educado e por debaixo dessa barba deve ter boa aparência, forte, boa estatura. Você não tem família?

Novamente o homem, agora com expressão de desgosto, baixou a cabeça e começou a relatar a sua odisseia:

— Sou de Florianópolis. Eu era jogador de tênis, estava bem ranqueado, não pensava em outra coisa senão em ser campeão olímpico. Certa vez fui convidado a jogar em Fortaleza e aceitei. Ao término da partida, conheci uma senhora, jovem e bonita, que, depois de alguns encontros, lá e cá, me convenceu a morar com ela. Mulher rica, dona de uma das melhores lojas de perfumaria da cidade. Apaixonei-me por ela. Parou de falar e, com a cabeça sobre os joelhos, chorou.

— Foi paixão avassaladora, mas meu ciúme não a deixava em paz. Ficamos juntos por seis anos. Sei que ela gostava de mim, mas o meu ciúme doentio a deixou desesperada. Várias vezes ameaçou-me mandar embora. Eu ficava louco, batia nela, primeiramente somente alguns safanões, depois tapas. Eu não me controlava.

— E o que aconteceu depois?

— Um dia cheguei em casa e minhas coisas estavam no portão. Não poderia entrar. Fiquei sem chão. Desabei. Fui dormir na rua, no outro dia fiquei sabendo que não mais trabalhava na loja dela, atividade que me dava muito prazer, pois eu conhecia, pela fragrância, todos os perfumes vendidos na loja. Reconheci que estava errado, mas não voltei mais. Não queria passar por aquilo novamente. Restitui-lhe a liberdade.

Depois de alguns minutos calado, ele falou baixinho:

— J’adore de Dior, o perfume que ela mais gostava.

Depois daquela confidência não tive mais coragem de continuar nossa conversa. Tirei algum dinheiro do bolso e, discretamente, coloquei dentro de uma sacola que estava a seu lado. Levantei-me e segui o meu caminho, para casa. Sabia que nada poderia fazer por aquele homem, já que ele próprio se dera o castigo que estava cumprindo para remir-se de seu desacerto.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 20/10/2020
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