Velha

Velha

Sentada de costas para o passeio, ela sentia de olhos fechados os cheiros que passavam por ela. Seu sentido olfativo era aguçado e podia sentir de longe cheiros agradáveis ou não. Odores eram capazes de transportá-la a lugares diferentes. Adorava perfumes de flores, cítricos e amadeirados. Lavanda era o seu predileto. O odor da lavanda, mesmo sem nunca ter conhecido a flor, era especial e a transportava para um lugar bastante significativo: o cheiro ocre da velha, ela soube bem depois que eram a mistura de lavanda e suor. Costumava ficar de longe observando seu jeito rude, seu andar ligeiro, corpo mirrado e olhar desconfiado esperando sempre ser solicitada, para só assim chegar perto chegava perto. “Venha”, dizia a velha, “penteia meus cabelos”. Ela corria para pegar o velho pente desdentado e seu óleo de coco muito bem refinado. “Tá lavado?” mas logo se arrependia da petulância pois a velha só a olhava de esgueira, fazendo-a rubrar como se um crime houvesse cometido. Ela não sabia, mas ao voltar a sua posição de frente, a velha sorria pelo canto dos lábios finos e enrugados, certa de que o quase carão tinha assustado muito mais do que um belo grito. Mas não era apenas a velha que sorria de esgueira, ela também tinha seus momentos de revanche. Uma das suas funções, era sem duvida cercar a velha de cuidados. Seguindo-a para onde quer que fosse, mesmo que escondida. Ela não sabia sua origem nem muito menos se tinha algum laço de sangue com a velha. Nunca lhe explicaram de onde tinha vindo, chegou a um tempo em que suas indagações a esse respeito deixaram de ter sentido ou importância. Seu amor e gratidão à velha já eram suficientes o bastante para fazê-la se sentir da família. A velha tinha dois filhos que quase nunca a visitavam e ainda não haviam dado a velha netos, razão da pendenga e ralhos com os filhos sem filhos. “Posso ser sua neta” ela se lembrava de um dia ter dito. Essa foi uma das poucas vezes que a velha não havia falado com ela rispidamente. “Podia. Mas num é!”. O som de sua fala quase amorosa deixou seu coração quente e feliz. “Eu sei que sou mais que isso” disse a si mesma. A velha soltou seus cabelos da tara marrom deixando a tarefa de pentear seus cabelos a menina enxerida. Cabelos longos, finos e grisalhos chegando em suas nádegas e que ali deitavam sobre o banco largo e comprido da sala a fizeram lembrar de seus segredos sobre as vezes que seguia sem permissão. Geralmente esses momentos eram delegados a tomar banho no riacho. A velha devia ter sido bonita em sua juventude. Corpo magro, era cor de café com leite fraco e tinha o olhar amendoado das caboclas. Seu ritual de banho se dava sempre a meia tarde, quando cigarras faziam barulho ensurdecedor nas cercas que protegiam a casa. Levava um pote de barro pequeno com suas coisas: pente, sabão de coivara e mel, óleo de coco. Nos ombros a toalha, e roupas limpas. Sua toilette ainda era enriquecida por um vidro de perfume de lavanda que era colocado em cima da penteadeira cheia de mimos de seus filhos como a pequena caixinha de cera carmim que ela usava nas bochechas e lábios sempre que eles apareciam, a caixinha de brincos, três ao todo, um pequenas florezinhas douradas, um de bolinhas de prata e outro lindo de caroço de arroz. “Serão seus, quando eu me for, mas não agora”. Com certeza ela preferia não herdar os brincos, preferia sua companhia para sempre. Ela deu início a pentear os longos cabelos se perguntando por que ela não os cortava curtos, os cabelos de uma mulher é seu véu, seja na virgindade, solitude ou viuvez, assim diziam os mais velhos. Separou seus cabelos em duas partes da testa à nuca, massageou sua mão com um tiquinho de óleo de coco, trançou duas finas tranças prendendo suas pontas com pequenos pedacinhos de tecido vermelho colocando as em volta de sua cabeça fazendo-as se encontrarem depois de uma volta completa no alto da cabeça segurando-as com a velha tara. Serviço completo, a velha olha para ela sem agradecer dizendo: “venha, vamos tomar um café com pêta, filha”. Ela sorriu, embalada pelo agradecimento torto e por suas memórias mesmo que rôtas e incompletas.

LadyM

18.10.2020