Redenção

A história que contarei a partir de agora realmente ocorreu, pelo menos é o que me garantiu meu amigo Domingos, filósofo, a quem considero pessoa íntegra e que afirmou, convincente, a veracidade do ocorrido. Ora, Domingos fora testemunha ocular dos fatos, e não estranhe o leitor ao tomar conhecimento de que tudo se passou em um presídio de São Paulo.

Meu amigo estava cumprindo pena, aliás, foi lá que ele teve acesso pela primeira vez a um livro de filosofia. Quando o conheci ele já havia saído da prisão após sete anos de condenação por roubo. Não cabe nessa história todos os detalhes que fizeram de Domingos um criminoso no passado, o que posso dizer é que ele nascera em uma das regiões mais pobres da cidade e que, desde muito pequeno, fora transformado em um soldadinho do tráfico. Como sobreviveu? Ele mesmo diz que foi por milagre... Isso agora, porque, a um tempo atrás, ele repudiaria qualquer explicação sobrenatural, apoiando-se em suas leituras de Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, que ultimamente ele tem comparado com o francês, Blaise Pascal, considerando que este último supera o primeiro. Mas vamos aos fatos testemunhados por Domingos.

Ao chegar na prisão, meu amigo, que mal tinha frequentado a escola durante vida, descobrira que aquele local era uma verdadeira escola do crime, de modo que quem aplicava as lições eram as facções criminosas. Havia duas facções que dominavam o presídio, e a guerra entre elas levava a mortes frequentes e violentas entre os detentos. Domingos, quando foi preso, desejou sinceramente que essa punição o tirasse do mundo do crime, mas logo percebeu que era mais provável que acontecesse justamente o contrário. Ele sentiu que estava afundando num abismo e não havia volta.

Na cela em que Domingos foi jogado, havia quinze detentos, apesar de só ter capacidade para oito. Os presos viviam a maior parte do tempo ociosos e quando trabalhavam era obedecendo ordens criminosas dos chefes das facções. Desobedecer essas ordens era correr risco de vida. Na cela só havia uma única facção, e Domingos fora cooptado por ela.

Em meio a um momento de descontração entre os detentos, como que aliviando a atmosfera violentíssima da prisão, um homem conhecido como Duda, faz piada com um outro preso:

— Você é muito perna de pau... Dibrei o goleiro e toquei a bola pra você... Era você e o gol... Você chutou pra fora!!

Todos os detentos riram, mais pela graça da situação, do que pelo temor a Duda, que era um dos chefes da facção.

O homem que era o motivo da piada, chamava-se Zélio e, no lance em questão, numa das peladas permitidas na quadra da prisão, realmente tentara fazer o gol, mas estava tão fácil que ele acabou se enrolando e chutando pra fora, protagonizando uma situação cômica.

— Eu chutei no gol, caraio... Sei lá o que aconteceu! — disse Zélio, e caiu na gargalhada junto com os outros detentos.

Nesse momento, Duda achou que também era cômica uma situação ocorrida fora da prisão, em que um membro da facção criminosa, que atuava em sequestros, acabou, por engano, sequestrando a própria sogra.

— Este é um azarado, ela nunca mais vai deixar de infernizá-lo! — concluiu Duda, rindo.

Os demais detentos também riram dessa estória, mas já sentindo que ela evocava toda uma atmosfera demasiado sinistra, que era comum a eles. Afinal, a facção realizava muitos sequestros em troca de dinheiro, e toda a crueldade de estar envolvido numa coisa ruim como essa, agora pairava no ar.

Então, um homem velho, sentado no canto da cela, subitamente disse:

— Mas isso acontece porque a maioria das pessoas ataca as folhas do mal em vez de atacar as raízes...

— O quê, velho? — questionou, Duda.

— Quem disse isso foi Thoreau — respondeu o velho.

— Esse velho viaja — disse um dos presos.

— Sócrates afirmou que o saber é o único bem, e o único mal é a ignorância. Concordo com ele, e penso que somos maus porque ignoramos o que é o bem — disse o velho, enquanto todos o olhavam embasbacados.

— Conversa fiada... Somos maus porque nascemos virados para o Satanás! — retrucou Duda, de modo a arrancar risos maliciosos da maioria dos detentos.

— Os que menos escutam os conselhos são aqueles que mais precisam, os ignorantes... Leonardo da Vinci.

Duda já nem escutou a última frase do velho, mas alguns detentos, inclusive Domingos, ficaram atraídos por sua sabedoria.

O velho se chamava Carlos e já estava preso há vinte anos. Nos últimos tempos, graças ao bom comportamento, fora-lhe permitido o acesso a livros, em um projeto da instituição que, infelizmente, não era permitido a todos. Carlos, então, tornara-se um leitor voraz e tinha o hábito de falar de coisas que ao meu amigo Domingos eram totalmente novas.

Inesperadamente e influenciado por Carlos, Domingos passou a ter acesso à pequena biblioteca da prisão e, em sua própria expressão, foi como um pirata que encontrasse um baú repleto de tesouros, e ninguém poderia roubar aquilo que ele guardasse em seu espírito.

Só o conheci muitos anos depois, quando já fora da prisão, em um projeto de incentivo à leitura a crianças nas regiões mais pobres de São Paulo. Ele estava convencido de que, se as crianças despertassem o amor pela leitura, ganhariam asas que as levariam para longe da criminalidade. Fazer com que elas despertem esse amor tem sido sua luta até hoje.