PREGO DE TRILHO
O tempo consumiu o dormente que foi meu companheiro nesses muitos anos de serviço, mas agora sem a responsabilidade de manter o trilho bem aprumado para não deixar as rodas saírem do lugar e descarrilhar os trens que não param nunca, posso me dar ao luxo de observar o mundo ao meu redor.
Cascalho, muito cascalho a perder de vista, embora pensando melhor, meu horizonte é bem pequeno porque minha altura é quase nada, sou pequeno, mas sou muito bom no que faço, serviço eficiente e duradouro.
Lembro-me bem do dia em que cheguei aqui.
Estava com meus companheiros dentro de uma enorme caixa de madeira.
Os homens vieram, nos transferiram para maletas de lona e saíram do galpão.
O sol era forte, tempo seco, muita poeira, caminhões de todos os tipos trazendo o cascalho e as toras de madeira lavradas para montagem dos trilhos.
Fui um dos primeiros a sair da maleta de lona.
A claridade quase cega meus olhos acostumados com a escuridão da bolsa.
Depois de aprumado na posição correta, dois homens gigantescos, armados com malhos de cabo longo, bateram cadenciados em minha cabeça até que todo o corpo tivesse penetrado naquele dormente que, como o nome diz, parecia dormir sem sentir as pancadas.
Durante todos os anos em que estivemos juntos, quase nada ele falou, mas sempre resmungava por sentir cócegas quando apareciam insetos querendo se alojar por baixo dele.
Depois de terminado o serviço, os homens foram embora e nunca mais voltaram.
Vez por outra, uma máquina com garras enormes, levantava os trilhos e com pás mecânicas revolviam o cascalho por baixo do dormente, sempre acrescentando mais um pouco de cada vez.
O ir e vir dos trens não nos deixava dormir em paz.
Os dias se escorriam quentes, com muita luz ofuscante do sol, mas quando a noite caía, aquele fio gostoso nos despertava saudade dos companheiros que nem sei se ficaram na caixa de madeira ou se foram levados para outros dormentes, a luz da lua criava fantasmas por entre as nuvens de vapor daquelas locomotivas antigas que passavam marcando o tempo com seu chiado e o ritmo das rodas ao passar pelas emendas dos trilhos que se aproximavam no calor e se afastavam com o frio da noite.
A turma da manutenção substituiu o dormente de madeira por outro de concreto.
Fui jogado para longe da linha depois que um daqueles homens considerou que eu estava imprestável.
Pensei em silêncio, finalmente a aposentadoria.
Apesar do corpo carcomido pela ferrugem, eu ainda estou em forma.
Isso também pensou um rapaz que me apanhou e trouxe para dentro da ferraria. Forja de carvão.
Fui jogado no meio das brasas até ficar parecendo cenoura.
Fui escovado. As cerdas de aço retiraram toda camada de ferrugem e voltei para dentro do fogo.
Depois que fiquei vermelhão, deram muitas pancadas por todo o corpo, mas nenhuma na cabeça.
Fiquei delgado, acho que agora tenho trinta centímetros.
Prenderam-me na morsa de bancada e com chave inglesa, torceram-me várias vezes.
Depois mais forja e pancadas até que o resto do meu corpo se transformou numa lâmina com ponta arrebitada.
Um banho no óleo quente para dar a têmpera e lixa para construção do fio reto.
Ganhei uma guarda de bronze entre o cabo torcido e a lâmina.
Com o trabalho de arredondamento das arestas da cabeça do antigo prego que fui, agora sou uma belíssima faca afiada, forte e digna de participar do próximo filme do Rambo...