UM CONTO POÉTICO
Naquela manhã de outubro, de um sol lindo a despontar pela janela do seu quarto, acordou disposto a sentar na frente do computador para publicar mais um conto no Recanto das letras. Andava pensando nos poucos poetas que visitavam a sua escrivaninha e, gentilmente, deixavam comentários sobre os seus escritos.
A poesia dentro do Recanto da Letras, site literário voltado aos escritores amadores, era um fenômeno muito forte e de uma diversidade rica em subcategorias. Tanto assim que havia divisões de toda ordem como poetrix, rondel, aldravias, cordel, haikais, sonetos, trovas, e outra tantas derivações do gênero. Não tinha a menor ideia sobre muito daqueles termos. Sabia serem tipos de poesia com características específicas, apenas isso.
Tinha por hábito retribuir as visitas ao seu espaço literário sempre que podia. Se o autor era contista, lia as histórias com prazer, gostava de comentar, pois a prosa contista fazia parte do seu habitat cultural. As crônicas também não o intimidavam. No entanto, quando dava de cara com um poeta, as coisas complicavam porque ele não era apreciador do gênero. Assim como não sabia fazer poesia, tinha dificuldade de comentá-las igualmente.
As visitas destes poucos poetas, principalmente aqueles que deixavam opiniões sinceras, distantes de comentários vagos, mereciam um gesto de agradecimento por parte dele em visitá-los também. Por outro lado, não podia chegar lá e apenas expressar generalidades do tipo “seu texto é muito bonito, parabéns”. Não! O autor do poema deveria se sentir satisfeito em ser efetivamente lido.
A poesia, entretanto, muitas vezes tem ampla variação de sentidos e peculiaridades subjetivas que podem passar despercebidas para quem não é do ramo. O contista receava interpretar mal o que autor queria dizer, principalmente ambivalências relacionadas aos sentimentos implícitos, ou algo próximo disso.
Então pensou, lá com os seus botões, será que alguns poetas tinham dificuldade de comentar contos assim como ele tinha dificuldade de comentar ou analisar uma poesia? Muitos dos seus contos já escritos, e outros futuros, eram do gênero terror. O gênero terror podia assustar os mais sensíveis. Poetas são, por excelência, escritores sensíveis! Eles têm um olhar diferenciado de ver o mundo sob a ótica de uma lente de cinema. Por essa razão, ponderou ser apropriado deixar algo mais palatável aos poéticos desavisados que, por ventura, aparecessem na sua escrivaninha.
De repente, os pensamentos o levaram para um dia qualquer da semana anterior dentro do Recanto das Letras. Na oportunidade, presenciou um garoto de 14 anos, poeta na veia, tentando, dentro de um processo criativo aberto, produzir um conto. Logo, o jovem reconheceu ter dificuldades e não chegou a terminá-lo. O contista ficou pensando sobre a disposição do jovem. Se um garoto poeta de 14 anos se desafiou a fazer um conto, por que ele, com muito mais experiência literária, não poderia tentar uma poesia?
Escrever um poema para quê? No mesmo processo de raciocínio, respondeu para si mesmo: bom, você pode se esforçar um pouquinho pelo menos para deixar no seu acervo algo de acolhedor para um poeta 100% poeta.
Legal! Era isso que queria fazer!
Havia um outro contratempo.
Não cogitava escrever uma poesia e publicar dentro da categoria apropriada. Não se sentia bem em profanar o espaço de quem entendia do riscado. Por isso, depois de pensar por quase meia hora, chegou a bom termo produzir um conto e, dentro deste conto, escrever a poesia. Ótima ideia! Não era um recurso original, sem dúvida, mas resolvia o problema. Uma poesia dentro de um conto! Então, encarou de frente o computador escreveu a sua obra poética:
A saudade contida
Acordei logo cedo
Mesmo sabendo que queria dormir
A luz amena através da cortina
Me trouxe de volta
O ambiente que na infância ...vivi
O vento fresco barulhando a janela
O ruído da moto distante no inverno
A dor gostosa da febre pequena
A conversa dos velhos
O cheiro inconfundível do café
Fechei os olhos
A mente abri
Portas fechadas ...reminiscências
Da saudade contida
Por música, tão minhas, ás vezes, rompida
Que gostava, quando podia ...sentir
E naquela manhã
Timidamente ...sorri
Ligados as lembranças
Das ruas, das festas, dos amigos
A bola cortada pelo vizinho
Coisas espaçadas da vida
Minhas experiências e andanças
Todas elas de repente, na cama, juntadas ...assim
Levantei logo cedo
Mesmo querendo não ir
Embriagado por uma alegria imensa
De viver o que vivi
Retalhos desbotados de um mundo
Para o mesmo mundo saí
Sem tomar café
Atrasado, correndo, vestindo a camisa
Fechando as portas da casa e da mente
Arrebatado pelo caos urbano
Sem dono ...de mim
Uma Pena!
Depois de terminada a composição, não sabia nem em que subgênero a mesma se enquadrava, mais uma boa razão para deixá-la dentro de um conto mesmo. Deu uma boa olhada em todo o conjunto à procura de vícios de linguagem, fez uma revisão detalhada e publicou. Em seguida, saiu para o dia ensolarado, feliz da vida, pois acabara de escrever uma poesia! Sim senhor, uma poesia!
Se o texto poético era bom ou ruim... ahhh, isso já era uma outra história!