De novo sobre a pandemia?
- De novo vai escrever sobre a pandemia?
- Tentando....para um outro concurso sobre esse tema.
- Cruzes, onde arruma tanta coisa pra dizer sobre isso?
- Esse assunto dá muito pano pra manga, você sabe disso. Mas confesso que já estou sem ideia nenhuma.
- Pudera, quantos textos já escreveu sobre isso? Uns dez?
- Acho que, entre contos, crônicas e poemas, uns oito.
- E como consegue variar tanto?
- Me inspiro nas notícias, no passado, na minha rotina, nos meus próprios sentimentos.
- Olha, se eu tivesse que escrever e fosse depender dos meus sentimentos, acho que só ficaria xingando tudo e todos. Maldita pandemia!
- Mas a gente sempre pode aprender alguma coisa de bom de qualquer situação.
- Eu preferia ter aprendido dos livros.
- Você é muito nova, ainda não entende bem o valor de estar vivenciando essas dificuldades todas.
- Mãe, vamos combinar que, comparado com outros, até que não estamos tendo dificuldades, né? Aqueles que perderam o emprego, os que não podem escolher ficar em casa, os que ficaram doentes ou mesmo morreram da doença, esses sim!
- Verdade. E é por isso que aqueles que podem devem registrar tudo isso. Eu, por exemplo, escrevo porque gosto e esses concursos me servem de incentivo e desafio. Sei que não tenho chance nenhuma, mas o que eu escrever ficará como registro dessa época. Não para a História, mas ao menos para que vocês e meus futuros netos saibam como passamos esse período.
- Acho super legal esse seu hobby, te faz bem e você escreve super bem. Eu gostaria de ter esse dom.
- Não é dom, é ter prazer em fazer. Nem por isso é fácil. Requer boas ideias, argumentos originais, vocabulário variado, senso de humor, pensar no leitor, ser original. E só consegue quem lê muito, de boas fontes, para aumentar seu repertório. É preciso viver um tanto de anos pra chegar lá. Com a sua idade eu não escreveria o que escrevo hoje. E olha que não chego nem aos pés de escritores medianos.
- Você é modesta, sabe que escreve bem e fica querendo confete.
- Tem coisas de que gosto e outras que poderiam estar no lixo. Mas sempre sinto prazer quando termino de escrever. Parece que ocorre uma catarse. Fico com aquelas ideias ou palavras me rondando durante dias e noites, e só quando as transformo em um texto é que me livro delas e sinto prazer.
- E você fica pensando na pandemia pra poder escrever sobre ela?
- No começo da pandemia, escrevia motivada por todas as novidades e sentimentos que me rondavam. Agora é diferente. Primeiro porque o incentivo é externo – um concurso literário; segundo, porque, de fato, parece que tudo já foi dito sobre o tema. Assim, é preciso ser bastante original para escrever algo que preste.
- Você já escreveu sobre a angústia dos adolescentes?
- Não especificamente, por que? Gostaria de me ajudar? Quer falar o que te angustia?
- Ah, sei lá, não sei se é angústia. O que é angústia exatamente?
- Uma sensação de abafamento, de falta de algo que você não sabe o que é, um aperto no peito.
- Pode ser isso sim. Quando me pego pensando nessa pandemia, em tudo o que ela mudou na minha vida, sinto uma coisa ruim por dentro.
- Talvez seja um medo, não? Do futuro?
- É....antes eu pensava no futuro só como coisas boas que poderiam me acontecer. Agora já não tenho certeza. Achava que, se eu me esforçasse, estudasse bastante, iria cursar medicina, ser bem-sucedida, ganhar bastante dinheiro, casar, ter filhos e ser feliz.
- Acho que a pandemia não vai necessariamente impedir que isso se realize. Você ainda é muito nova e até lá tudo vai ter se normalizado.
- Vai mesmo? Quem garante que essa não é apenas a primeira de muitas?
- Deus nos livre! Será que no final desta não teremos aprendido a nos prevenir?
- Mas não é só isso, mãe, acho que alguma coisa mais profunda mudou. A própria forma de encarar o futuro. Já não sei se quero tudo aquilo que queria antes. Já não dou valor pra um monte de coisas que dava antes.
- Por exemplo?
- Por exemplo, eu achava que ser médica me daria um status diferenciado, teria mais dinheiro, mais respeito, etc. Hoje acho que status é uma besteira, que dinheiro não é tão importante assim, e que respeito não se obtém com status e dinheiro. Entendeu?
- Claro! E você acha que foi a pandemia que te ensinou isso?
- Não exatamente, mas foi graças ao tempo de reflexão que ela me proporcionou. E também por tudo o que eu tenho visto as pessoas passarem nessa pandemia. A gente percebe que depende uns dos outros pra sobreviver e viver bem. E que ficar pensando só na gente, só na nossa felicidade, nos nossos sonhos individuais é muito mesquinho e não ajuda a melhorar o mundo.
- …
- Outro exemplo: eu via a medicina apenas como um trampolim para ter status; me imaginava no futuro num consultório chique, atendendo pessoas ricas. Hoje, vendo o perrengue que esses médicos passam, já entendo que a medicina tem um papel social muito mais relevante, e que todo médico deveria ter esse compromisso em primeiro lugar.
- Ainda assim, continua querendo ser médica?
- Vou pensar bem sobre isso. Posso estar descobrindo outras coisas que gostaria de fazer como profissão. Tenho que pensar que o que eu escolher vai ser para o resto da minha vida. E a vida de médico é muito difícil.
- Ué, mas....
- Não que eu queira uma vida fácil, mas pode ser que queira ajudar os outros de uma outra forma. Estou pensando, depois conversamos sobre isso.
- Olha, acho que você me deu algumas ideias para escrever sobre a pandemia. Obrigada! E quanto à sua angústia, se servir de consolo, acho que todos nos sentimos assim atualmente. Mas se te incomoda muito, podemos procurar ajuda.
- Fica tranquila. Boa sorte!
(outubro 2020)