Consideração
A vassoura, em seu feitio de todos os dias (menos nos finais de semana), passava de lá para cá, de cá para lá, com exagerado cuidado diminuía a velocidade dos golpes dados por aquela empregada doméstica, quando perto da parede ou de algum móvel com "inestimado valor" para a patroa.
Cissa, a empregada, seguia à risca o que lhe passara a patroa dona Ana. Ela tratava a dona da casa com muito respeito, com seus 42 anos era fácil, devido à sua humilde criação que foi regada com muito respeito aos mais velhos; o respeito aos patrões veio depois, já com 15 anos, que foi quando deu seu pontapé inicial na vida de mulher trabalhadora. Dona Ana, senhorinha com suas 63 passadas pelo mundo, tinha a Cissa como qualquer um daqueles móveis espalhados pela casa, nunca foi desrespeitosa com a doméstica, mas não lhe afagava o ego; sempre comedida em elogios. "Quem elogia estraga" esse é um daqueles ensinamentos que vêm de berço. Até vejo nisso certa dualidade entre as duas.
Certa vez, um certo dia de uma dada semana, logo pela manhã, Dona Ana foi avisada da alta médica de um parente próximo, que estava na cidade para uma cirurgia. O parente não era menos abastado que Dona Ana, mas isso não chegou a influenciar na preocupação que a senhorinha tinha com doenças contagiosas. Cissa é que já estava habituada com a rotina da patroa, que só a deixava trabalhar depois de tomar banho e esterilizar as mãos. As roupas da empregada eram lavadas todos os dias. Cissa tinha a instrução de nunca aparecer no trabalho ao simples sinal de um resfriado. "Bom seria se todos os patrões, em parte, fossem como a dona Ana — perdi as contas dos dias que, de manhã, só minha alma levantou da cama, se arrumou e saiu para ir trabalhar."
Antes de chegar na parte em que o tal parente chegou na casa da dona Ana preciso contar de um presente que ela ganhou da patroa quando a mesma foi turistar na Suécia.
O que conheço da Suécia é do que me contam, o que li na rede e matérias que já vi em programas de televisão. Pelo pouco que sei, parece ser um ótimo país para se viver; horrível de se visitar, devido ao fato de que sempre chega a hora de voltar. Voltar à dura realidade dos nossos egocentrismos onde conseguimos nos distanciar de quem nos toca as faces de tão próximo. Nos fazemos galáxias no universo dos afetos. Os muros altos são menos por proteção do que por nos privar da degradante visão de um mundo que está doente.
Nos dias que a patroa passou na Suécia, Cissa ficou em casa. A patroa, não sabendo se a empregada seguiria a risca os rituais de sempre, achou melhor dar uns dias de folga para a empregada. Cissa preferiu pensar que essa atitude teria partido do bom coração da patroa, que não era lá muito dada a boas ações. A semana, para as duas, passou voando. Uma estava feliz por poder passar uns dias em casa, a outra, maravilhada com as coisas que via em outro país, estava mais ainda. Cada uma em feliz à sua maneira.
Ficou combinado que a patroa ligaria para a empregada quando voltasse de viagem. No sábado à noite elas se falaram pelo telefone; Cissa iria voltar à rotina na segunda-feira. A patroa aproveitou para lhe informar que havia trazido um presente para ela. Atordoada com tamanha surpresa, Cissa acabou não perguntando o que era, pensou que, fosse o que fosse, a patroa tinha lhe trazido uma surpresa. Cobriu a patroa com afetuosos agradecimentos e calorosas palavras de amizade, e desligou. Logo que desligou o telefone Cissa foi tomada por uma curiosidade sem igual; no seu íntimo ficou espetando sua mente com finas lâminas de possibilidades. E assim foi o domingo da empregada. Nunca, em toda a sua vida, percebeu um domingo tão arrastado, tamanha era a sua ansiedade.
Na segunda-feira, pela manhã, Cissa fez o caminho, da sua casa ao trabalho, na maior felicidade. As infindáveis possibilidades não haviam a abandonado nem por um instante. Quando chegou no trabalho, e depois de cumprir os rituais de sempre, finalmente recebeu o presente. O pacote era pequeno, mas coisas pequenas têm lá seus "valores". Recebeu o pacotinho não antes de deixar a patroa com um de seus calorosos abraços; seguido de um "não precisava" e "a senhora é um anjo". Abriu o presente com o maior cuidado e atenção, e pode, finalmente, ver o que era. Ficou por alguns segundos sem esboçar reação. Quase não acreditou quando viu um chaveiro entre os seus dedos. Onze anos trabalhando para aquela senhora, e não merecia nada mais que um chaveiro.
Quando o interfone tocou e foi informado que o tal parente da dona Ana havia chegado, ela ficou extremamente aflita com a possibilidade de ele estar trazendo consigo algum visitante inesperado e mal quisto em sua casa. Fez um tremendo esforço para não deixar transparecer seu desconforto quando o parente passou da porta para dentro. Cissa não estranhou quando os viu sentados no belo sofá com uma boa distância entre eles. O visitante não ficou muito. Algumas pessoas têm o dom de perceber quando sua presença causa desconforto. Também tem a possibilidade de as manias de dona Ana não serem segredo para seus parentes. Se tem uma coisa que os parentes sabem fazer é falar dos que não se fazem presentes. Quando o tal parente de dona Ana foi embora, ela ficou uns 7 minutos parada olhando para o sofá. Estava pensando se poderia incinerar o sofá no mesmo lugar onde estava. A primeira coisa que fez, depois de voltar do seu transe, foi tomar um banho bem demorado. Enquanto isso deu a hora da Cissa ir também. Perguntou se a dona Ana iria ficar bem até o patrão chegar do trabalho. Sim, dona Ana iria ficar bem. Então as duas se despediram na porta com um "até amanhã" muito bem sincronizado. São onze anos de despedidas e reencontros.
No outro dia, pela manhã, Cissa chegou em seu horário habitual. O que não era de hábito foi o espanto que teve ao ver o vazio onde antes havia um sofá muito bonito. A patroa lhe informou que não teve jeito. O sofá foi para o lixo na noite anterior. Cissa só conseguia pensar no chaveiro.
(Extraído de uma conversa no ônibus)
"O cotidiano foi, é e sempre será a inspiração para quem quer escrever com verdade."