Maria do Cais
Me embebedo da noite, no cangote da escuridão fungo e me atiço. Com meu pinho de antigas eras eu bagunçava encontros, festinhas, saraus e coisas e tais. Com voz de fazer concriz morrer de inveja, enfeiticei mulheres e fiz muito macho chorar com dor de cotovelo. Menestrel das sombras, dos becos sisudos, nos bares e meretrícios do Recife antigo eu era rei. As putas todas brigavam por mim, homem de futuro garantido e bonito e boêmio e empregado de banco federal. E solteiro. Pronto! Meu gosto alcoólico variava de acordo com o ambiente. Na zona bebia de tudo. No banco bebia uísque e vinho e umas caipiroscas. Era um democrata do copo. Perguntaram-me já te deitaste com Maria? Que Maria? Chamam-na de Maria do Cais. Dizem que pra se chegar a ela tem de se marcar com antecedência, tamanha a procura. Tem juiz, médico, professor, desembargador, empresário, político… Eu já tinha me deitado com todo tipo de mulher, com mulher que me despertava formigamento na libido. E o que essa dona tem de especial? Ninguém sabe, um mistério, sei que teve neguinho que quis largar mulher e filhos por ela, mas ela deu um coice no avexamento do cabra e o jogou na depressão de tentar se matar. Ouviste falar no juiz que se jogou debaixo do trem? Cabra virou pasta de carne e ossos, tudo por causa de Maria. Teve um político que endoidou, foi parar no manicômio por causa dela. Inventaram uma história que ele ficou assim porque perdeu a última eleição. Conversa.
Desguiei daquela conversa, coisa mais pra baixo, papo de bêbado chinfrim. Peguei o pinho e tasquei um Adelino Moreira na medula dos meus bebuns. Todos se calavam e minha voz passeava pelas paredes antigas e sujas daqueles prédios mareados pelo cais das ruas do trotoir das subsistências dos anos de antigamente. Pudesse virava a noite, mas tinha de estar a postos no guichê do caixa de minha sobrevida, naquele banco federal, agiota oficial. Odiava aquilo tudo, mas precisava daquilo tudo, que música e voz bonita não sustentam ninguém. Ganhara uns festivais merrecas promovidos pelo banco, coisa de pequena monta. Aconselharam-me grava uma fita cassete e manda pra Mocambo, eles gostam de prestigiar gente nova e de talento. Tanta porcaria aí gravando esses tais de iê-iê-iês com letras horrorosas, manda. Mandei não, nem mandaria. Máfia. Tudo máfia. Minha arte era invendável, pensei com um orgulho descabido. Arte, que arte? Talvez artefato de uma mente prenhe de orgasmos criativos brochados por incapacidade de convivência humana com a chamada burguesia, defecada mal dada de satanás.
Eles que se refestelem nos banquetes de carne estragada no hades.
Aí se deu o infortúnio. Dei de conhecer a tal Maria do Cais. Meu amigo disse ela quer conhecer o trovador cujas feições lembram a de Che Guevara, cuja voz de melro preto deixa as putas e os bebuns ensandecidos. És privilegiado, nem marcou hora. Estava eu em All The Way quando vi aquela mistura de carne, beleza, sedução, olhos azuis, quantos anos? Dezoito, meu amigo me disse. Miramo-nos e os nós da doidice nos atou de nunca desatarraxar, nós salgados pela água do cais. Mais rápido que bicho penseiro, peguei a melodia de Pier Gynt, de Grieg, e lasquei uma letra cafona de doer nos ouvidos. Mostrei a ela. Demo-nos noites, dias, semanas…
No dia da graça de Nosso Senhor de 19.07.1966, o Diário de Pernambuco, na página policial, sapecava a manchete: Casal encontrado morto em bordel da rua da Guia. Polícia suspeita de suicídio. Foi mais lida que a derrota do Brasil para Portugal, na Copa do Mundo da Inglaterra.