"Céu ou Inferno?"

17/10/2019

160

Volto do interior, da casa de minha irmã, dirigindo e pensando no que ocorrera há vinte e quatro horas. Fora o segundo aviso!

Estava em casa no final de sexta-feira, meu celular toca; era minha irmã. Um pensamento ruim me veio à cabeça: aconteceu!

-Cláudia?

-Oi Fer, a mamãe não passou nada bem agora à tarde e está internada aqui no pronto socorro. Ela pediu para você vir pra cá! - com a fala aflita e ansiosa.

-O que aconteceu?

-Depois do almoço ela começou a ter muita dor de cabeça, depois ânsia de vômito. Falei com o médico e ele mandou vir direto pra cá.

- Tá, eu vou então!

-Espera um pouco, se ela melhorar e puder voltar para casa, melhor vir amanhã. Eu te aviso.

-Tá bom. Desligo. A ansiedade e a preocupação tomam conta de mim. Esperar nestas condições é muito estressante. A agonia começa a me contagiar!

Completara noventa e seis anos fazia dez dias, lúcida e alegre. Agora novamente esse mal súbito. Da outra vez, foi um aumento significativo de pressão arterial, desfaleceu, foi internada e voltou. O primeiro aviso! O médico dissera que teve leve derrame, sem sequelas, mas se acontecesse novamente poderia ser fatal, pela debilidade do seu coraçãozinho.

De novo, minha irmã liga.

-Ela está melhor. A pressão foi para 24, mas está estabilizando. Eu disse que você viria amanhã, mas foi irredutível, quer que venha hoje! Sabe como ela é, né?

- Tô indo agora. Sabia que deveria estar ao seu lado, lhe dar carinho e amor.

Eram oito horas da noite de sexta-feira e o trânsito da cidade ainda pesado, mas fui consciente de que demoraria mais do que o normal.

Veio-me o pensamento de estar na fase em que os amigos, pessoas queridas morrem - dois se foram nos últimos seis meses, minha ex-sogra também e agora minha mãe, talvez. São os avisos que nos dá a nossa curta existência. Tenho medo de morrer!

Dirigia o carro com pensamentos nostálgicos, questionando como seria sem ela. Sempre foi o nosso esteio, nosso porto seguro, meu e de minha irmã, e com certeza, ficaria meio sem rumo - medo de ficar "sozinho". Envelhece-se e os medos aumentam!

Cheguei às dez e meia daquela noite de sexta-feira muito quente, indo procurar o posto de saúde. Cidade pequena, sem movimento, somente alguns carros no centro e algumas pessoas aglomeradas nos bares e restaurantes, o programa que tinham. Parei em um posto de combustível e me informei sobre o "PS". Era perto. Cheguei e entrei no saguão esperando ouvir choros, mas não encontrei minha irmã e cunhado. A ansiedade e a preocupação aumentaram. Onde estarão?

- Por favor, queria saber da Dona Maria Ceravolo que está internada aqui. - falo para a atendente que aponta para outra porta perto:

- Pergunte ali no Pronto Socorro!

Fui à direção indicada com o coração na boca, entrei. Havia uma mulher sentada à mesa. Uma enfermeira de olhos grandes e verdes que se sobressaiam em seu rosto, provavelmente descendente de holandeses - a cidade é Holambra, a das flores - levanta seu olhar, e com eles:

-Pois não?

-Minha mãe foi internada hoje à tarde, sou seu filho. - a voz sai preocupada.

-Uma senhorinha que estava com a pressão muito alta, não? Já foi para casa faz uns quarenta minutos!

-Obrigado! - respondo mas mais aliviado. Vou para a casa deles.

Encontro-a deitada no sofá da sala, quietinha. Converso antes com eles sobre o que ocorrera. Dizem que teve aumento súbito da pressão, chegou a 24, desencadeando as fortes dores de cabeça e as ânsias de vômitos.

-Olha, eu pensei que ela não recuperaria, passou muito mal, pior que da outra vez! Por isso que pediu para você vir. - fala ela.

- Eu achei que o bilhete dela para o céu estava sendo emitido! - diz meu cunhado brincando como sempre, mais parecendo uma forma de não mostrar seu nervosismo.

Chego ao seu lado, ela me vê, sento-me no sofá e lhe dou um abraço carinhoso e demorado em seu corpo frágil.

- Que bom que você veio. Não queria ir sem te ver!

Fiquei sensibilizado e emocionado por sua consciência e lucidez, e claro, por ainda estar conosco.

- Pois é, Dona Maria, ainda não foi dessa vez! - brinco, que ri sem forças.

Ficamos ali conversando, eu acarinhando seus braços finos e seus cabelos brancos como algodão. Nossos momentos de amor, inesquecíveis!

Ela melhorou e subimos demoradamente as escadas - estava ainda tonta pelos remédios. Sim, seu quarto fica no andar superior da casa, ela quis assim para poder fazer um pouco de exercício. Deitou-se na cama e dormiu. Dormi no quarto de hóspedes ao lado, estava calor e não foi um bom sono, agitado e preocupado, esperando que houvesse o chamado final durante a noite.

Sábado, levanto e vou até seu quarto, ela já sentada esperando o café da manhã que a moça que lhe cuida traria. Minha irmã tinha compromisso em Campinas - defesa de tese de minha sobrinha e saíram cedo.

-Oi, Fer. Bom dia! Dormiu bem?

-Oi mãe, sim e você? -dando-lhe um beijo e um abraço demorado, que ela manteve. Gostoso abraçar quem se ama, não?

- Sinto muitas saudades do seu Pai! Seu abraço me lembra dele! - meu coração dispara. Quem bom que a consolo assim.

-Pois é querida. E como foi a sua noite? - mudando de assunto.

-Não dormi a noite toda! Passei precisando fazer "xixi", os remédios que causam isso, não? Gastei todo o estoque de fraldas, mais prejuízo pra sua irmã! -com seu bom humor de sempre.

- Pois é, é assim mesmo. Tem que ter paciência para se recuperar.

-Já tomou café?

-Não. Vou esperar vir o seu e tomo o meu lá embaixo. A moça traz a bandeja com frutas, pão com geleia e café com leite - ela sempre adorou café com leite. Cumprimento-a. Ela é muito querida e paciente, gosta muito da minha mãe. Desço ,tomo o meu desjejum rápido, voltando para o quarto. Ela terminara o seu também.

-Comi tudo! Olha. - mostrando seu prato vazio como uma criança.

-Ótimo!

Começamos a papear, ela sentadinha na cadeira, eu deitado em sua cama. Vou lhe estimulando a memória, perguntando sobre as novelas, os programas de entrevistas e jornais que mais escuta do que vê, pela deficiência ocular que tem - mácula. Enfim, demonstra que está voltando ao seu normal. Incrível a sua fortaleza e lucidez. Em dado momento da conversa, diz:

- Já é a segunda vez que me acontece esse mal súbito e volto. Parece que não querem que eu suba!

- Pois é, deve estar lotado, sem vaga ainda para você! - rimos.

- Eu fiz um pacto com teu pai ainda vivo, que o que fosse antes do outro, voltaria para dizer como é lá, e levar aquele que ficou.

- É mesmo? Não sabia!

- Então, daquela vez que tive aquela queda de potássio, apaguei e fui pro hospital, lembra?

- Sim, claro!

- Tive uma visão! Estava dirigindo um carro em estrada que não conhecia, nem aonde iria dar. Vi seu pai junto a outras pessoas, parei e lhe perguntei: "Fernando, me ajude, não sei aonde vai dar esse caminho, me ajude! " Ele respondeu: "Não posso te ajudar, estou ocupado, segue o teu caminho". Eu, então, acordei na cama do hospital!

- Que coisa, hein!

- Pois é ; agora eu quero ir e não vou, ou não me querem lá! Acho que ele deve estar no inferno, não no céu, é isso! Fazendo suas viagens, comendo suas comidas e eu achando que está no céu! Por isso não veio me buscar ainda! Eu prefiro também ir pra lá, poderemos viajar juntos, dançar, fazer as comidinhas que adorava. Deve ser bem melhor o inferno, não acha?

-Sim, querida, deve sim! -abraçando-a com meus olhos lacrimejantes.

Foi uma linda história de amor, a de meus pais.

https://blog-do-cera.webnode.com/

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 11/10/2020
Código do texto: T7084734
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.