“Sons da Infância”
24/10/2020
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-Pamonhas, pamonhas, pamonhas! - escuto ao final da tarde, vindo de um carro passando na minha rua com essa cantilena. O som ecoa até o meu apartamento, vou à sacada e o vejo estacionado.
- Pamonhas, pamonhas, pamonhas! - segue com sua voz caraterística, como nas cidades do interior, onde essa propaganda é comum. Mas aqui, uma novidade inesperada.
Lembro-me daquele carro da "pamonha", da minha época de criança, passando pela rua de casa com esse mesmo canto. Eu não gosto de pamonhas.
Outro dia foi um amolador, ou afiador, de facas e tesouras, com o apitar agudo característico da sua gaita, inusitado também, empurrando seu carinho de uma roda só de bicicleta. Sons da minha infância.
Em outra vez, cruzei com um mendigo e o reconheci pelos olhos azuis cristalinos e a barba hirsuta vermelho sangue - era o mesmo de menino. Deveria ter minha idade, completamente desconexo, falando as mesmas frases repetidamente. Lembranças da infância.
Depois desses reencontros, lembrei-me daquela época, cinquenta anos atrás, século passado (sou do século passado!) de algumas coisas inesquecíveis:
O leite era entregue em casa cedinho, em garrafas de vidro trocadas pelas vazias deixadas no portão;
O pão, pelo padeiro em sua lambreta com caixa de madeira na traseira, na qual vinham os "filões", que eram como uma "baguette" mais grossa hoje, ou o pão doce que eu adorava, com seu recheio de massa amarelada e açúcar cristal salpicado por cima. O barulho da lambreta avisava a chegada;
O sorveteiro, que vinha com uma carroça, de "capotinha" onde estava a geladeira, puxada por burrico e parava nos terrenos baldios, haviam vários nas redondezas, para cortar capim. Tinha uma buzina, uma corneta daquelas de apertar para se anunciar. Seu sorvete era caseiro e não muito bom. Nostálgico;
O lavador de carros, um negro simpático de sorriso alvo e largo, "curinthiano" roxo, conversador, passava pela rua em que jogávamos bola, querendo falar com meu pai para que me levasse para jogar em seu time, e toda semana, lavava um carro em uma rua próxima. Lembro-me do seu riso franco, alegre e do som de sua fala grossa e cadenciada;
O som crescente do meu pai vindo para casa em seu fusca, virando a rua, subindo, parando e entrando na garagem. Eu deitado, fingindo estar dormindo, ouvindo e esperando que passasse em meu quarto e desse "boa noite" com o carinho de suas mãos em meus cabelos. Saudades...;
O som que vinha do quarto de minha irmã, ao lado, da vitrola tocando à noite as músicas que se dançavam na época, com as duas vizinhas amigas que vinham "escutar música" e fumar escondido no terraço;
O som da voz firme da minha mãe chamando-me pelo nome: Fernando! (coisa boa não era);
O som da batedeira de bolo na cozinha, minha mãe preparando um de chocolate, fofo e delicioso, que só ela fazia, com seu cheiro inebriante ao assar;
O cantar dos sabiás cedinho, acordando-me do sono tipo "deita-acorda" instantâneo, sem paradas, o que hoje me é impossível;
O som dos poucos aviões que passavam pelo céu de casa, curioso, acompanhava-os até o pouso, hoje impossível, devido à selva de prédios;
Os sons dos almoços de domingo em família, do conversar alto e alegre de meu pai com meu tio; os barulhos da cozinha, minha mãe fazendo "macarronada", com molho vermelho e as "brajolas" cheirosas, em um panelão, no qual, eu enfiava o pão e comia lambuzando-me deliciosamente.
Muitos sons continuam esquecidos, adormecidos talvez, mas reavivam com esses agradáveis, inesperados e inusitados reencontros.
Saudades, saudades, saudades, dos sons e das lembranças da infância!
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