CORRENTE  SAMELLO

Em 1960, os sapatos Samello eram muito cobiçados pela moçada brasileira, mas seus preços proibitivos os tornavam apenas um distante sonho de consumo, sendo adquiridos somente pelas pessoas mais endinheiradas. Com custo equivalente a uns 800 reais de hoje, cabe a pergunta: qual o pai - por mais corujão ou esbanjador que fosse - investiria uma fortuna dessas nas extremidades inferiores de um fedelho de 14 anos, pra ele ficar chutando pedras e pisando em cocô de cachorro pelas estradas da vida?
A Samello havia recém-lançado um modelo esporte de duas cores - marrom e branco – divulgado amplamente em revistas de grande circulação nacional como ‘O Cruzeiro’ e ‘Manchete’, e que estava fazendo um estrondoso sucesso entre a playboyzada tupiniquim. Era belíssimo e não havia marmanjo que não o cobiçasse, mas nem pensei em pedir um ao meu pai, pois apesar de - ou justamente por - ser um ótimo pai, jamais me brindaria com um mimo tão dispendioso. Não que ele fosse pão-duro, ou que fôssemos pobres, tratava-se de uma escolha de prioridades na vida, já que ele tinha outros cinco filhos pra criar, cada um com suas necessidades e vontades individuais, que precisavam ser satisfeitas ou rejeitadas da forma mais equitativa possível.
Assim sendo, quando parecia não haver qualquer esperança de concretização do meu desejo, surgiu uma promissora oportunidade. Um amigo chamado Arnaldo ofertou-me uma corrente de sapatos Samello, na qual eu compraria uma cota com o valor do sapato dividido por quatro; venderia quatro cotas neste mesmo valor; e depois aguardaria em casa pra receber o par escolhido.
Em princípio, duvidei de tanta moleza, porque naquela época as correntes ou pirâmides não eram ilegais, mas também não eram bem vistas. Entretanto, como o Arnaldo já havia recebido vários modelos pagando somente 25% do valor - porque ele vendia três das quatro parcelas e ficava com uma, garantindo o recebimento de pares subsequentes ao custo de um quarto do preço - justamente por isso, criei coragem pra encarar o desafio. Levantei os 200, e vendi as minhas quatro cotas; dentro do prazo fixado, chegou o meu Samello de duas cores!
Foi uma baita alegria, uma festa, mas quando eu iria estreá-lo? Tinha de ser numa data especial. _”Já sei: na missa de domingo no colégio, repleta de gatinhas e com os colegas de turma presentes, que certamente irão babar!”
Meus pais também foram à missa e estranharam me ver com aqueles sapatos bandeirosos, mas não criaram caso. Chegando ao colégio, de pronto constatei que não era o único a portar a novidade: o Nilson, um colega de classe, lá estava com sapatos iguaizinhos. Putz, que azar..!
A restante da turma só zoando e achando tudo muito cômico, todos com os seus sóbrios sapatos pretos, bem como rezava a cartilha marista no quesito ‘Traje dos alunos para as missas dominicais’.
Só que a coisa piorou, quando sem aviso prévio surgiu a implacável figura do Ir. Antonio Boeing, sedento pra passar em revista os seus pupilos. Era muito azar..! Claro que Nilson e eu jamais poderíamos ficar despercebidos...hehehehe. De pronto, nos isolou dos demais:_”Vocês dois...aguardem no pátio!”. _”Por que, Irmão Antonio? Fizemos alguma coisa?”_”Esses sapatos de ‘playboyzinho’...combinaram vir assim só pra avacalhar a missa? _”Claro que não, Irmão...foi coincidência, é que tá na moda”. _”Está na moda, é ?? E o regulamento do colégio, jogaram no lixo ??”
E assim terminou essa história: os trajados adequadamente lá no lugar santo, assistindo a missa; Nilson e eu no átrio dos gentios, um olhando pro sapato do outro.

(Marco Esmanhotto)