288 - A Francesa
Ficou por lá trinta anos e voltou sem saber mais que meia dúzia de palavras em francês, palavras que fazia questão de pronunciar a cada passo, como se o francês assim dito lhe desse categoria ou sorte. Na sua rua chamavam-lhe “a francesa” e raros se davam com ela. Via o mundo por trás da cortina da janela e, se o assunto exigisse ouvidos, fingia varrer o passeio para apreender tudo como um gravador. As alterações seriam feitas quando contasse ao marido ou, eventualmente, se achasse orelhas disponíveis na mulher que, uma vez por semana, encerava os tacos, lavava as janelas e carregava o lixo. Casos mais bicudos eram partilhados com a cabeleireira que fazia milagres com os restos de cabelo puxando os pelos para o alto e enchendo tudo de laca até ficar bem firme. Vista de longe a cor ruiva da cabeça parecia arder sobre a pele descorada. Pintava a boca de vermelho vivo e tinha brio nas unhas garridas. Coleccionava notas que distribuía pelos livros que nunca leu, pelo interior dos sapatos, em jarros, frascos ou potes de porcelana. Depois esquecia-se do lugar e tinha de pensar tudo outra vez imaginando os melhores esconderijos para achar a nota que lhe fizesse falta. Após alguns anos acamado, o marido morreu, ela passou a sentir-se muito isolada e deprimida e, pela solidão ou pela insónia, via todas as novelas numa televisão de grande formato. Baralhava as histórias, ouvia mal, entristecia. Levantou a maior parte do dinheiro que havia na conta bancária e investiu num jazigo de três lugares onde, dizia, garantia que seria depositada com o marido e o único filho que tinha. Da nora e dos netos nem se lembrou. Um dia deram com ela no sofá, boca aberta, o som da televisão no máximo, olhos arregalados. A seguir ao funeral, mesmo sem precisar de anunciar, o filho vendeu com lucro o jazigo. A mim não fará falta, disse.