"Ricardão"

11/11/2019

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Chovia muito naquela segunda-feira na cidade, quase o dia todo, sem parar. Eram quase oito horas da noite e eu estava de saída do escritório para voltar para casa. E com fome!

Teria que pegar o metrô, descer uma rua movimentada até a estação, cerca de um quilômetro distante. A chuva continuava em sua toada firme, sem mostras de que pararia. Tinha uma "sombrinha" chinesa, daquelas retráteis e que cabem na mochila, prateada (!) - comprara em dia de chuva forte também em banca de jornal, a única cor existente e a usaria com certeza. Mas, não protegia muito, era de diâmetro pequeno e acabaria por me molhar, era certo.

Saio do escritório, água batendo forte no guarda-chuva, escorrendo por ele molhando-me quase todo, somente a cabeça e parte dos ombros seguiam ainda secos. Ia a passos rápidos, fugindo das poças, descendo a rua em direção à estação. A fome seguia incomodando, batia forte como a chuva.

Chego em um cruzamento familiar e na esquina, um bar - o "Bar do Mário" - que frequentei por algum tempo com um amigo que ia lá quase todos os dias e sentava no canto do balcão com seu inseparável cigarro com cerveja. O Ricardo ou "Alemão", apelidado assim por ser descendente de alemães. Tinha um metro e noventa de altura, cabelos loiros como palha de milho, olhos azuis, um perfeito ariano. Infelizmente, faleceu há alguns anos, mas foi por causa da bebida. Era alcoólatra! Éramos bem amigos, nos conhecemos no cursinho e de lá nossa amizade seguiu firme até arrefecer e tomarmos rumos diferentes. Gostava dele.

Na esquina, relembrando aquele tempo, resolvo ir até lá. Cruzo a rua, entro pelo local, do mesmo jeito daquela época. O Mário na chapa não me reconheceu e eu também nada disse sobre ter frequentado seu boteco. Sentei em uma mesa de frente para a tevê, na qual passava o jogo do meu time, Santos, da final do campeonato paulista de futebol contra o Corinthians. Jogão!

-Pois não "dotô" - fala o garçom, com sotaque nordestino, colocando o cardápio sobre a mesa.

-Vou dar uma olhada. - respondi. - Mas pode trazer uma coca normal com gelo e limão, por favor.

Começo a ler a relação de sanduiches, estava em uma folha plastificada, impressa dos dois lados, típico de bar, tendo um texto sobre ser o seu bolinho de bacalhau um dos melhores da cidade. A fome era maior que o "petisco" famoso.

Vejo então o título: "Ricardão". Fico curioso, pois acabara de tê-lo na memória, que coincidência! Peço:

-Me traz um "Ricardão", por favor.

-"Ricardão", certo "dotô". Vai gostar, é "mutcho bão"!

Mário ouve o pedido, me encara com um sorriso e começa a trabalhar no "Ricardão". Sigo acompanhando o jogo. A chuva amainara, ótimo, poderia secar um pouco a roupa, estava com as calças molhadas até os joelhos. A sombrinha aberta no chão secava também.

Acompanho Mário elaborando o meu "Ricardão", quando termina, o garçom o traz. Parece e cheira bem. Como com avidez e o gosto é bem misturado, mas bom, do jeito que o Ricardo gostava. Encheu a barriga, era o que precisava.

Termina o primeiro tempo do jogo, levanto para pagar e falo para o Mário:

- Por que o sanduiche que comi tem o nome de "Ricardão"? É em homenagem ao Ricardo "Alemão"?

- Sim! Ele comia direto esse sanduiche, foi ele que o montou e em sua homenagem batizei-o assim. Você o conheceu?

- Pois é, não está me reconhecendo, mas vim muitas vezes com ele aqui. Tinha bigodes na época, 10 anos atrás.

- Ah, não estou reconhecendo, não.

- Tudo bem. Bela homenagem a ele, com certeza!

- Sim. Ele vinha aqui quase todos os dias, no almoço ou jantar, estava sempre tomando cerveja, que acabou com ele. Pena, era um cara legal!

Sim, fora um "cara legal".

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 04/10/2020
Código do texto: T7079316
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