“Te Acuerdas?”
20/11/2019
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Vejo no "Face book" uma mensagem de uma amiga argentina, Ana Maria, casada com Mariano, casal que conheci em uma das idas à Florianópolis nos anos 90. Trazia a foto de um quadro que pintara em cores vivas e lhes presenteara. Um estilingue bem colorido!
-" Te acuerdas? Não me recordava!
Tive uma fase de "pintor" naquela época. Comecei de forma acadêmica, pintando à óleo, copiando paisagens, frutas, objetos, enfim, exercitando a técnica - era autodidata. Não gostava dessa forma de pintar, me sentia preso às normas e padrões - queria ser mais livre e sem obstruções, soltar a criatividade sem amarras ou dogmas. Rebelde, como sempre.
Tinha a empresa de engenharia e sobravam tintas das obras: látex, esmalte, zarcão, alumínio, "neutrol"- preto asfáltico, "pó xadrez" - para tingimento - enfim, uma miscelânea de cores e texturas. Comecei a usá-las, largando as bisnagas de tinta a óleo, os pinceis de cerdas lisas e macias e a palheta. Libertei-me!
Segui pintando objetos, saleiro, caixa de fósforos, minha moto, enfim treinando o uso destas tintas, e depois, parti para o abstrato.
Ia aos sábados à região central da cidade, na Rua Major Sertório, local em que acontecia uma feira de materiais de pintura, como telas, tintas, cavaletes e comprava as maiores.
Havia um vendedor que parava sua Kombi em uma esquina, um uruguaio, brincalhão, já de idade, cabelo e barba cerrada branca, calça, suspensórios e sandália de couro com meias brancas. Uma figura!
-Bom dia!
-"Buenos dias señor! O que posso ofrecer? "
-Estas telas (eram de 1,50 por 2,00m, enormes como gostava) quanto custam?
-"Otchenta reales" cada! - respondeu em seu portunhol carregado.
- Vou levar as quatro!
- "Mui bueno! "
Pago, recebo o pacote, agradeço e brincando falo obrigado, em francês:
- "Merci beaucoup!"
-"No seu tambien! " - responde ele.
Gargalhamos.
Levava-as para casa de carro, abaixando o banco traseiro do "golzinho". Entravam encostadas no teto e empurrando minha cabeça quase no para-brisa. Uma aventura! Ia ávido para chegar e começar a soltar a energia criativa.
A garagem no andar inferior virou o meu "atelier". Jogava-as no chão e começava a lançar as tintas sem qualquer concepção prévia, a pintura nascia por si só, sendo o seu condutor. A sensação era genial, no brotar e no crescer das formas e cores. A criação pura! Vi depois os quadros de pintor americano, Jackson Pollock, que pintava como eu, ou melhor, eu como ele, claro!
Pintava duas, três telas juntas, passava quase a manhã toda nesse frenesi criativo, em êxtase. Meus dois filhos, pequenos, vinham ver o que acontecia e aproveitavam para rabiscar as paredes comigo. Ficávamos todos lambuzados de tinta. Era uma farra e molecagem boa. Eu os incentivava e a mãe nos recriminava. Um dia, ela desceu às escondidas e pintou uma palmeira muito bonita, integrando-se a nossa brincadeira.
Por sua causa, comecei a pintar quadros -tivera aulas com pintor renomado e me incentivou. Sempre desenhei e gostava de ver as pinturas dos famosos (meu ídolo é Van Gogh, com suas cores fortes e enérgicas), mas até então não havia experimentado pintar.
Muitas vezes, em visita à casa de amigos, reencontro as "criações". Doava-as a quem se manifestava espontaneamente ao vê-los, a quem se sentia sensibilizado pelas pinturas, a quem gostava delas, porque é o que importa. Tornou-se algo interessante, pois seguidamente sou lembrado por alguém que me envia foto das telas, como agora a dos "gringos" queridos. Não me lembro das muitas que pintei.
Hoje, não tenho mais nenhuma comigo, foram dadas aos amigos, aos filhos, algumas vendi, outras ficaram, depois da minha separação, na casa em que pintava e por aí vai.
Penso em voltar a pintar, faz muito que não o faço, mais de 20 anos, no mínimo. Estou curioso para ver o que sairá, pois hoje mais maduro poderão ser mais austeras, será?
Meu pai falava: "o lobo perde o pelo, mas não perde o vício! ".
Veremos!
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