"Meus amigos"
24/11/2019
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Todos os dias cedo, como uma maçã na sacada do meu apartamento no décimo andar, cortando-a em pedaços com uma faca. Admiro o iniciar dos dias e deixo na murada do gradil, o resto, ou o meio da maçã com as sementes, para os pássaros.
Coloco junto cascas de mamão, os sabiás adoram. Enfim, vira uma quitanda a varanda. Aguardo-os com a porta de vidro fechada da sala a observá-los. Fazem-me companhia. São meus amigos.
Quando morava com minha mãe aqui, plantara na floreira um arbusto com flores azuis, um tipo de orquídea. Os beija-flores vinham sugar seu néctar pairando no ar, bichinhos pequeninhos, de bico pontudo e enorme, como a sua língua, um estilete fino e cumprido. Hoje, a planta não existe mais, os inquilinos arrancaram-na. Pena, perderam a bela visão desta visita. Eles não comem frutas pelo que eu saiba.
Vêm os sabiás, os bem-te-vis, os sanhaços-cinza comê-las, alegrando-me. Nossa cumplicidade diária. Meus amigos, e que as terão todos os dias enquanto ficar aqui.
As pombas, que detesto, transmissoras de doença, não as deixo chegar à elas. Li que estão desaprendendo de voar, são quase terrestres, pois comem o que há no chão e o que lhes damos de comida. Um crime contra a natureza, o nosso!
As andorinhas voam também no seu balé frenético, pela manhã e final do dia, mas não comem as frutas. Meu pai dizia que, quando fazem ninho na sua casa, é sinal de sorte. Não fizeram aqui. Pardais, poucos ou nenhum aparecem para o repasto frutífero.
Outro dia, observando a paisagem de prédios e mais prédios, chamou-me atenção dois gaviões voando juntos, um casal talvez. Gaviões em uma cidade como essa? Como estarão sobrevivendo no meio do concreto?
Vi na praia,uma vez, dois quero-queros atacando um gavião em voo, bicando-lhe a cabeça, afugentando-o do seu ninho, pois comem seus filhotes - são predadores vorazes. Mas aqui, foi a primeira vez. Perto do prédio, há uma praça com algumas árvores, mas nada comparado às matas. Fiquei intrigado.
Pousaram em uma antena em edifício próximo. Observei-os. Ficaram um tempo ali; depois, voaram fora da visão. Também não comem frutas, mas preferiria ao invés dos filhotes de algum animal. Vários dias aguardei se reapareceriam, mas nada. Foram para algum lugar menos árido, ou só estavam de passagem.
Há os urubus, em numero maior e mais frequentes, talvez pelo lixo na cidade em alguns locais, pois não há sujeira pelas ruas, e até hoje não vi nenhum pousado em alguma lata de lixo, ou comendo carcaça de animal, é raro ou quase impossível encontrá-los assim, a cidade não permite.
Enquanto escrevo, aparecem dois cardeais que bicam a maçã e o pedaço de mamão, um "bom dia" de agradecimento pela refeição matinal. Tento tirar fotos, mas ficaram longe e quase imperceptíveis no meio de tantas imagens cinzentas. Meus amigos.
Estou alugando o apartamento e vindo vários interessados. Um dos corretores, português deduzo pelo seu falar, senhor já e meu "xará", Fernando, que ao mostrar a sacada fala apontando os restos, "o senhor Fernando deixa aqui as frutinhas para os passarinhos bicarem", com forte sotaque e objetividade lusitana, deixando-me feliz pela sua percepção. Os visitantes geralmente não se interessam pela observação.
Outro dia, na visita de uma senhora, que ao ver a floreira disse, "olha tem lugar para as minhas plantas!", ao que retruquei, "minha mãe tinha uma com pequenas flores azuis e sempre vinham os beija-flores bicá-las". Ela sorriu, somente. Pena, não serão mais alimentados. Boa sorte, meus amigos.
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