TEM NEGO BEBO AÍ

Uma admirável dupla de artistas despontou em 1965 em Curitiba, com apresentação diária na esquina da Prudente de Moraes com a Padre Agostinho. Só que o Romão, proprietário da Mercearia Trevo ali situada, vivia implicando com o show, dizia que afastava a freguesia mais chic, que o lucro diminuía, e coisas desse tipo.
Jabu e Bugre – os protagonistas do espetáculo - pernoitavam na ‘chacrinha’, gleba de terra localizada onde hoje é a Telepar. Por volta das três da tarde, vinham os dois completamente mamados, descendo a Padre Agostinho e já cantando, pra aquecer a voz e não fazer fiasco no show; com isso, também comunicavam a sua chegada ao numeroso fã-clube, constituído pela gurizada e piazada da região.
Cabe aqui uma explicação. Antigamente em Curitiba, crianças e jovens eram classificados pela idade e tamanho, segundo os rigorosos critérios e preconizações da ACNT – Associação Curitibana de Normas Técnicas, a saber: Gurizinho de bosta, 4 a 6 anos; guri, 6 a 8; gurizão, 8 a 10; piá de merda: 10 a 12; piá: 12 a 14; piazão: 14 a 16; marmanjo: 16 a 18; marmanjão: também de 16 a 18 anos, mas com mau aspecto e avantajado na altura. Essa classificação ficava restrita para o gênero masculino, pois as meninas e moças eram sempre chamadas de ‘gurias’, independente da idade. Excepcionalmente, era permitido chamar a própria irmã ou alguma vizinha de ‘guriazinha’, com a claríssima intenção de humilhá-la, mas somente em caso de a mesma ter aprontado alguma boçalidade muito grande. Outra coisa, chamar alguém de ‘marmanjão’ era medida corretiva, pra colocar em seu devido lugar um marmanjo que se entremetesse em brincadeiras e atividades de piás e piazões. Assim sendo, no primeiro deslize ou tentativa de prevalecer pelo tamanho e safadeza, imediatamente surgia um adulto curitibano pra restabelecer a ordem no recinto:_ “Ô marmanjão, cai fora daqui e deixa a piazada em paz!”.
Mas voltemos ao show. Convocação feita, a rapaziada ia chegando e se assentando nos meios-fios frontais e nos degraus externos da mercearia. Jabu impunha um ritmo contagiante, numa lata enorme e pesada, suspensa por uma corda que enlaçava o seu pescoço e quase o enforcava. Bugre repicava uma aguda latinha de marmelada Peixe. Invariavelmente, abriam o espetáculo com ‘Tem Nego Bebo Aí’, lembram dessa? _”Foi numa casca de banana que eu pisei, pisei, escorregueeei....quase caí!”. Era um delírio geral, acompanhado de pedidos de ‘mais um, mais um!’. Que sucesso extraordinário...pra desespero do Romão. Pouco adiantava seus apelos para que fossem embora imediatamente, ou a vil tentativa de interromper o espetáculo oferecendo-lhes sanduíche de mortadela. Os dois não arredavam pé, não se deixavam subornar. Naquele tempo ainda havia gente séria...
A situação parecia irreversível, até o dia em que o Joni, filho do Romão, teve uma ideia brilhante, levada a cabo pelo pai. No ponto alto da apresentação, quando cantavam “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim...”, surgiu por detrás e inesperadamente a figura do Romão, pulverizando sobre eles uma lata inteira de inseticida, com uma daquelas bombas de flit. A dupla tentou se safar, sem parar de cantar e sem perder a classe, mas o Romão não arrefeceu e os perseguiu impiedosamente, sempre a borrifar mais e mais sobre eles. Formou-se uma densa nuvem em torno dos mendigos cantores, que tossiam pra valer e não conseguiam sequer respirar.
Meia quadra da Prudente abaixo, Jabu foi a nocaute, e Bugre implorou misericórdia. Uma pena, mas a luta foi encerrada logo no primeiro round...
Nunca mais apareceram. Babau...fim da nossa diversão diária.
_”Pombas, Romão, pra que fazer isso ..?”
(Marco Esmanhotto)
 
Marco Esmanhotto
Enviado por Marco Esmanhotto em 29/09/2020
Reeditado em 29/09/2020
Código do texto: T7075052
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