“Garoto Valente!”
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Aos doze anos de idade, morava eu em uma casa geminada boa, bem localizada no terreno, com recuo na frente e terreno nos fundos. Tinha um amigo vizinho que gostava de brincar e vivia deitado como um gato no topo do muro lateral de divisa entre nossas casas, me chamando.
Ele adorava almoçar em minha casa, principalmente, às quintas feiras, quando minha mãe fazia macarronada, uma "pasta ao sugo" com molho de tomates com "bracciolas". Inigualável! Ela fazia o molho em um panelão enorme e eu enfiava ("chuchava") o pão nele e no queijo parmesão ralado e me deliciava. Minha mãe brigava comigo, dizendo "Não enfia o pão no molho, vai ficar cheio de migalhas, ainda mais que o colocou na boca já! "!
Coisas de moleque, mas meu pai fazia a mesma coisa.
Meu amigo de muro era pequenino, troncudo, de pernas tortas e pintas, sardas no rosto. Meu pai o chamava de "o menino da pintinha", em alusão a uma história que me contava sobre um garoto insistente, que "martelava" incessantemente sua mãe quando queria alguma coisa até consegui-la. Sim, ele era assim, ficava esparramado sobre o muro me chamando incessantemente até que eu aparecer. A sua cantilena era insuportável, me vencia pelo cansaço!
Foi então, em um desses dias, que aconteceu o acidente. Estávamos eu e ele em uma tarde de sábado, de verão, jogando bola no terraço dos fundos da casa, em frente à sala de estar com porta de correr em ferro com vidros tipo "vitrô". Começou a chover forte, uma pancada típica da estação, inundando o piso. Era feito de cacos de cerâmica vermelho, de uso externo nas casas daquela época. A cada chute que dávamos, escorregávamos de propósito e caíamos na água empoçada, em uma "molhação" típica de criança, adorando a água e a molecagem, sem pensar em risco de acidente.
Guilherme, o "pintadinho", começou, então, a escorregar de barriga no chão e de frente para a porta. Corria e dava quase que um mergulho, um "peixinho" no piso molhado, rindo desenfreadamente. Eu gostei da ideia. Fizemos algumas vezes.
A chuva aumentou de intensidade e na minha vez, tomei distância e me joguei no piso, agora com uma lâmina de água em todo ele, ocasionando enorme velocidade. Ia à direção da porta e não teria como parar! Ele assistia a tudo delirando de emoção e excitação.
Vi que não pararia antes da porta, estava sem controle e que entraria de rosto no vidro. Instintivamente, tirei a face do impacto e entrei com o meu ombro direito no vidro, que quebrou espalhando pedaços pelo chão. Assustado, retirei de imediato o ombro, me coloquei em pé e parei aparvalhado pelo ocorrido.
- Fernando, você cortou feio o seu ombro! Olha quanto sangue tá saindo! - fala assustado Guilherme, com os olhos arregalados.
Vi sair um líquido pastoso vermelho do meu ombro e ao mexer o braço uma massa branca aparecia. Fiquei desesperado e comecei a gritar:
- Socorro, Socorro! - chorava, junto com os berros.
Ele correu até a cozinha, onde estava a nossa cozinheira, Dona Angelina, que morava em casa com o seu marido, "Gigio" que veio ver o que acontecera. Meus pais e minha irmã não estavam em casa.
- Nossa "Fernandinho", que corte feio você fez! Vou te levar lá na farmácia do "seu Luiz" pra ver o que fazer! - disse "Gigio", envolvendo meu braço e ombro com uma toalha, que logo ficou toda vermelha de sangue.
Eu chorava já pensando no castigo que levaria pela peraltice perigosa que fizera e o transtorno que causaria aos meus pais. Castigo pesado na certa viria!
A farmácia do "seu Luiz" era como se fosse o nosso "hospital", nos atendia há anos, para todas as situações corriqueiras e emergenciais que surgiam. Coisas que, naquela época, eram comuns na cidade, ou melhor, no bairro, como se fosse no interior. Era farmacêutico e nosso amigo e segundo meu pai, estudara medicina mas não concluíra o curso.
Fomos a pé até o "Seu Luiz". Ele viu o corte, me olhou preocupado, fez um curativo, e disse para o "Gigio":
- Leva ele no pronto socorro para fechar com pontos, não tenho como fazer aqui. Vou chamar um táxi para vocês. É aqui perto.
Chegamos na clínica, entramos e o médico pediu para sentar na cadeira, dizendo:
- Não atingiu nenhum tendão ou nervo, teve sorte. Agora vou anestesiar o corte para dar os pontos, ok!
Resignado, senti a picada da agulha, ou melhor, as picadas, que arderam bastante. O médico pegou o anzol de sutura com a linha cirúrgica e enfiou no buraco. Dei um grito instantâneo de dor!
-Opa! A anestesia não pegou bem, vou reforçar. - disse, já pegando a seringa e injetando o líquido frio e áspero. Eu, sentindo tudo!
Inseriu novamente a agulha e dor de novo. Parara de chorar, conformado, mas fazia caretas!
- Caramba, dei a dose dupla e nada! Que coisa. Vou ter que suturar sem ela, você aguenta?
- Sim!
- Garoto valente! - diz o médico, tentando me animar. Eu, esperando a dor da costura, talvez como penitência pela besteira que fizera.
Começou então o meu martírio, ele enfiava a agulha, que não doía tanto, mas a pior sensação era a passagem da linha cirúrgica pelo furo, uma aflição danada! A "cirurgia" demorou cerca de meia hora e até me acostumei com o processo. Terminado, me diz:
- Garoto, você foi muito valente, não é qualquer um que aguenta tanto tempo assim, tantos pontos "no osso". Muito valente mesmo. Parabéns!
Enquanto a enfermeira fazia o curativo, meu pai chegou de cara fechada, mas preocupado - "Gigio" deve ter falado o que ocorrera. Encarou-me e foi falar com o médico, que lhe passou a receita do antibiótico com retorno para dali a sete dias tirar os pontos. Segui sentado, meio sonado, talvez pelo efeito retardado da anestesia ou por estar mais relaxado.
Fomos para casa, meu pai quieto, mas mais tranquilo. Gigio mudo como uma porta.
Chegamos e minha mãe me recebeu na porta de entrada, preocupada também. Eu, com um enorme curativo sobre o ombro direito e o braço na tipoia - o troféu da minha valentia.
Fiquei de castigo, sem sair na rua por mais de um mês e quando melhorei, tive que engraxar todos os sapatos de meu pai e lavar o seu carro a cada semana, por dois meses, para pagar os custos do vidro e do Pronto Socorro. Tenho a cicatriz até hoje.
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