Haverá outro encontro?

Desde que o marido mandou pintar o apartamento, já lá se vão pra mais de dois meses, que Carolina colocou na cabeça que deveria comprar cortinados novos, nem que fosse exclusivamente para trocar os da sala. Considerou o gasto que faria e decidiu: amanhã mesmo eu saio para providenciar essa mudança.

Foi numa quinta-feira do mês de maio, o céu amanheceu completamente limpo de nuvens, o sol brilhava forte e o termômetro acusava 26 graus quando Carolina chegou ao Saara, no Centro da Cidade.

- Que manhã bonita!, ela exclamou, logo que subiu as escadas da estação do metrô no Campo de Santana. - Um dia como este merecia um passeio turístico, algo como subir o morro do Corcovado e olhar tudo lá do alto junto ao Cristo Redentor, pensou consigo mesma. E sob a influência daquela manhã prosseguiu caminhando rumo ao comércio. Sentia-se bem, estava feliz, alto astral... Contornou a calçada na Praça da República e ao chegar diante da Igreja de São Jorge, decidiu fazer uma oração. Com o semáforo fechado para os carros atravessou de um lado para o outro sem dificuldade, entrou pela rua da Alfândega e subiu os degraus defronte da porta frontal do templo. O salão estava vazio, soube que a próxima missa só aconteceria dali a uma hora. Carolina então seguiu pelo corredor central até bem perto do presbitério e, sozinha, sentou-se no limite do segundo banco rente ao corredor lateral; acomodou-se e depois ajoelhou-se para rezar. Terminada as suas orações rogou aos santos por si e pelos seus, fez o sinal da cruz e levantou-se para sair. Refez todo o trajeto de volta admirando a arquitetura e a beleza no interior da igreja, e mal colocou o pé para fora do umbral da porta, avistou Jerônimo caminhando pela calçada em direção à rua Visconde do Rio Branco.

Jerônimo foi o seu primeiro namorado quando ainda estudavam o último ano do ensino fundamental na escola municipal do bairro onde moravam. Faziam a mesma série em turnos diferentes; ela de manhã, e ele no turno da tarde. No final daquele ano letivo o pai de Jerônimo, que era militar, foi transferido para outra cidade e a família se mudou de mala e cuia para Tabatinga, na fronteira do Amazonas com a Colômbia. Os namorados mantiveram contato permanente durante algum tempo pelas redes sociais; sem a presença física de um nem a do outro, a vida se encarregou de renovar a trajetória dos dois e eles acabaram perdendo o contato.

Afobada ela desceu os degraus da Igreja e seguiu caminhando apressada desejando alcançar o rapaz antes que ele mudasse de direção para qualquer lado. No dercorrer do trajeto passou um filme em sua mente repleto de acontecimentos, fatos e situações embaralhadas e ela se perguntava: “será que é ele mesmo; será que vai me reconhecer; onde estará morando atualmente; terá se casado?...” Quando reparou na pouca distância que os separava Carolina chamou: - Jerônimo!

Sem identificar a voz que gritou o seu nome ele parou e olhou à suas costas para atender ao chamado. Carolina se aproximava com um sorriso radiante e o coração palpitante como há muito não lhe ocorria. Ao reconhecer aquela por quem, no passado, manteve nobres sentimentos, ele se virou completamente e abriu os braços.

- Carol, quanto tempo!

- Jê, é você mesmo!

- Que alegria rever você! É, sou eu, em carne e osso. Como foi que me achou?, perguntou antes de se desligarem do abraço apertado que os uniu por breve instante e que deixou o rapaz com as pernas bambas.

- Eu saía da igreja, onde entrei para fazer umas preces, e do alto dos degraus te vi passar. Reconheci você porque olhou rápido na minha direção. Cheguei a duvidar, mesmo assim achei que devia arriscar.

- Que bom! Isso demonstra que você tem boa memória fotográfica. Para onde está indo agora?

- Memória fotográfica eu não sei, acho, sim, que você mudou pouco. Está mais alto, isto é fato, e corpulento, parecendo atleta, mas o rosto sem a barba é o mesmo de antes. Eu o reconheceria a um quilômetro de distância. Vim ao Saara para comprar cortinas. Preciso mudar o aspecto da minha sala... Pois então, diz pra mim: desde quando você está de volta ao Rio de Janeiro, está morando na cidade?

- Carol, você também mudou pouco. Quase nada. É sério! Não faz essa cara. E está linda como sempre, minha querida. Amadureceu, havemos de concordar, no entanto mantém o rostinho gracioso que me seduziu no último ano da escola Nicarágua, quando a gente se conheceu. Falo sério! E junto com esses olhinhos cor de mel, que eu adoro, quase fico sem saber o que dizer. Você continua sendo uma bela inspiração pra uma poesia, sabia? Ouça, já cumpri o compromisso que eu tinha aqui no Centro e tenho algumas horas livre pela frente, você aceita procurarmos algum lugar onde possamos conversar a vontade?

- Você sempre simpático e amável. Sinto-me lisonjeada com seus elogios.

- É verdade tudo o que eu lhe disse, acredite.

- Jê, eu casei. Há dois anos que vivo com o Rafael.

- É mesmo, Carol? Não fiquei sabendo, perdi todos os contatos. Espero que você esteja feliz junto dele. Eu também casei, mas separei logo depois. Hoje moro na cidade de Macaé com a Beatriz, minha segunda companheira. Você não respondeu se aceita a minha proposta. Conheço uma casa acolhedora aqui perto, acho que você vai gostar. Vamos até lá pra tomarmos um cafezinho? Teremos a oportunidade de esclarecer uma porção de coisa.

- É aqui perto mesmo?

- Sim. Vamos?

- Tá. Vou aceitar. Quero conhecer essa história, segundo casamento é?

- É verdade! Vem comigo, faço questão de ti contar.

O casal caminhou até a padaria Bassil, na rua Senhor dos Passos onde também servem almoço à la carte; entraram e ocuparam uma mesa junto á parede lateral no meio do estabelecimento. Jerônimo, de frente para a entrada da loja, sentou-se diante de Carol que ficou de costas para a rua. Não demorou para serem atendidos.

- Aimée, eu adorei este seu perfume!

- Primeiro ela sorriu, depois disse: aimée, há muito, muito tempo que não ouvia isso!

- Saiu naturalmente. Você ainda lembra a aula de Francês e o substantivo na frase: aimée?

- Sim, desde então você passou a me chamar dessa maneira - aimée - amada. Eu adorava. Adoro até hoje. É carinhoso.

- Descobri, bem depois, que há mulheres que carregam esse nome de batismo - Aimée, desse jeito mesmo.

- Sim, eu sei. Gostou do meu perfume, é? Uso ele sempre que estou de alto-astral e me sentindo nas nuvens; como o dia de hoje, você reparou? Está uma manhã bonita e bem agradável.

- A manhã está linda, eu concordo, embora longe de ofuscar a sua beleza.

- Jê, para com isso! Vou ficar sem graça. Conta a história, você morou em Tabatinga por quanto tempo, quando voltou?

- Para você entender, tenho que esclarecer o seguinte: meu pai já havia feito um bom pé de meia e faltava pouco para realizar seu maior desejo de consumo, comprar um imóvel próprio. O Exército paga uma gratificação especial ao militar que presta serviço noutras praças. Ele aproveitou esta oportunidade, pediu sua transferência no quartel e, no final daquele ano, quando eu e você completamos o ensino fundamental, mudamos pros confins da Amazônia. Lá vivemos por três anos; fui acometido de malária mais de uma vez e passei mal à beça, porque os recursos na cidade são escassos. Foi no primeiro ano em que estive doente que perdi contato com você. Quando retornamos, fomos morar com meu tio, irmão de meu pai, numa meia água independente nos fundos do seu terreno em Macaé. Tio Valdo mora na casa da frente. Meu pai recebeu a gratificação, correu o mercado, achou e imediatamente adquiriu a residência tão sonhada. Logo que nos acomodamos no novo endereço eu entrei num cursinho de reforço para o Enem, em seguida fiz a inscrição da prova. Consegui nota para fazer Educação Física. Antes de iniciar o penultimo semestre do meu curso, eu trabalhava no caixa de um banco e lá conheci a Denise, que trabalhava na recepção de uma operadora de planos de saúde. A gente se apaixonou e ainda sem nos conhecermos bem nos deixamos levar pela empolgação do momento e decidimos casar. O casamento precipitado foi um erro da nossa parte, além do mais, alugamos um apartamento na mesma rua e quase vizinho da casa onde moram seus pais, o que facilitou uma convivência com eles que não fazia parte dos meus planos. Eu reparava, e a minha mãe sempre chamava a atenção para a forma como os dois tratavam o nosso relacionamento, imiscuindo-se frequentemente na nossa vida e enchendo os ouvidos da própria filha com besteiras contra mim, principalmente, porque eu jogava bola todo sábado. Devido à essa intromissão do meu ex-sogro e da minha ex-sogra, começaram as desavenças entre a gente dentro de casa, que ficaram piores com o passar do tempo e deram fim ao nosso casamento; antes, quando solteiros, meu futebol não era problema, sempre muito segura de si Denise aceitava com naturalidade. Vou te contar essa história do início. Quando comecei a trabalhar no banco, eu e um grupo de amigos alugamos uma quadra dentro de um clube para jogarmos bola aos sábados. Além da quadra de esporte tínhamos direito de frequentar o bar, o restaurante e a área coberta pra lazer; havia brinquedo para crianças também. Por conta do conforto e as facilidades, depois de todo jogo tinha a nossa “resenha” no bar. Nesses momentos de descontração a gente bebia e conversava e quem levava a família, aproveitava para almoçar. Às vezes, para poder curtir a área coberta, promovíamos um churrasco naquele espaço. Quer dizer, saía de casa por volta de 8 horas da manhã e retornava às 2, 3 horas da tarde. De repente o dia de sábado virou um inferno em nossas vidas, era uma discussão sem fim. Várias vezes eu a chamei, pedi pra me fazer companhia, porque sentia a sua falta, além disso, havia outras mulheres no grupo, esposas e filhas dos companheiros com quem ela podia interagir, fazer novas amizades; Denise, no entanto, nunca aceitou, nem durante o período de namoro. Eu decidi não abrir mão do meu lazer por conta de intrigas, o relacionamento degringolou e a gente chegou a conclusão de que não havia condição de continuar; aluguei um apartamento pequeno e fui morar sozinho. Passado alguns meses, a agência de banco onde eu trabalhava fechou; desempregado, mas já formado e de posse do diploma, fui trabalhar numa academia de ginástica e conheci a Beatriz. Nós nos afeiçoamos e essa nossa afeição foi nos aproximando cada vez mais, decidi voltar pra casa dos meus pais e dei entrada no pedido de divórcio. Algum tempo depois, Beatriz fez o convite pra juntarmos as escovas de dentes, eu aceitei de pronto e lhe dei um sim de presente que valeu para nós dois, faz pouco tempo que estamos morando juntos. Nessa hora, Carolina levantou os sobrolhos, Jerônimo percebeu e disse: - Sim, partiu dela o convite, no dia do seu aniversário. Eu não esperava que ela tivesse tamanha coragem, e ela sabia que eu aguardava uma promessa de trabalho na EDF antes de assumir outro compromisso, fiquei feliz.

Enquanto Jerônimo contava sua história, Carolina não parava de admirar seus traços nobres, a testa sutilmente inclinada para trás, o cabelo sem qualquer alusão de eventual entrada ou calvície, o corte baixinho e bem delineado, o rosto completamente escanhoado, os olhos castanho claro, o nariz levemente côncavo, e a covinha no queixo que sempre a encantou agora deixava ele com aspecto de homem maduro. O corpo dele a atraía, algo a fazia se sentir bem, e feliz também; uma alegria inusitada.

- Olha! Que interessante! E o que você faz aqui, na cidade maravilhosa, em pleno Saara?

- Que casualidade incrível a gente se encontrar. Cheguei ontem. Estou hospedado no hotel Granada. Vim entregar meu currículo no escritório central da EDF Norte Fluminense. Finalmente fui contratado para trabalhar na academia que o grupo francês montou na planta de Macaé para atender seus funcionários. Estou ansioso para começar o quanto antes. Serei o comandante em chefe.

- Que legal! Espero que dê tudo certo. "Comandante em chefe!" gostei.

- Besteira, disse isso de brincadeira. Agora me fale de você. Está casada, tem filhos?

- Não. Acho que eu não seria uma boa mãe, Rafael também não faz questão. Ele é um cara legal, trata-me com respeito, procura me agradar; eu gosto dele. Como ninguém é perfeito, tem um lado seu que me deixava chateada, felizmente superado. É que ele é submisso demais à sua mãe, e ela se aproveita. Ela está se tratando de um câncer e tinha uma acompanhante, porém nunca deixou de recorrer ao filho sequer para tomar um remédio. Por vários fins de semana seguidos eu fiquei o dia inteiro lavando, arrumando e cozinhando na casa dela; em solidariedade, você entende? Aborrecida pela falta de atitude dele quanto a nós dois, cuja promessa de a gente morar junto vinha se arrastando a meses, uma hora eu parei de atender aos seus chamados e passei a evitar de o encontrar nos fins de semana, sempre alegando alguma coisa: um compromisso, a visita a um parente... Ele começou a ficar nervoso e, num determinado dia, chamou-me para vermos um apartamento à venda que me deixou encantada; ele conseguiu financiar o valor e formalizar o negócio, pagou a entrada, pegamos as chaves e, passadas duas semanas já estávamos ocupando o imóvel. A mãe dele entregou a casa alugada e foi morar com a irmã, onde, muito bem acomodada, até melhorou da doença. Parece que vai se curar de vez. Hoje ela está na maior expectativa para receber a alta prometida pelo médico. Deus queira!

Da mesma forma que Carolina admirou Jerônimo enquanto ele falava, este, por sua vez, contemplou a moça durante todo o seu discurso. Ela tinha a pele branca levemente queimada de sol; no seu rostinho quadrado duas pupilas cor de mel se acomodavam harmoniosamente lado a lado do narizinho curto e suavemente arrebitado, muito jeitoso e bem delicado; os fios de cabelo, finos e de cor castanho claro, escorriam quase ondulados até os ombros parecendo uma obra de arte diante de seus olhos extasiados.

- Entendo que vocês estão morando juntos. Não se casaram de papel passado. É isso, né?

- Sim, acho que você também não. Estou certa?

- É verdade, eu e a Beatriz nos juntamos. Com a Denise não, já disse antes, foi no cartório. Depois houve o pedido de divórcio. Foi fácil e rápido porque estávamos de comum acordo. Caramba, Aimée, a hora passou voando! O pessoal do almoço já está se acomodando, você reparou? Não quer aproveitar e fazer uma boquinha? Eu comerei alguma coisa, vamos!

- Confesso que estou encantada da sua companhia. Sim, vou aceitar. Antes preciso ir ao toalete. Levantou-se da cadeira e disse: - Você me aguarda um instante?

- Sim, claro!

- Que mulher sedutora, ele pensou enquanto ela seguia para o banheiro; e notou que as pessoas também repararam na sua beleza e elegância.

- Agora que você chegou é a minha vez. Aproveita e avalia o cardápio. O que você escolher eu vou querer comer também.

- Que homem elegante, ela pensou, ao ver Jerônimo caminhar para o banheiro, e atraente como ninguém. - Será que estou ficando de quatro por esse cara?, perguntou para si mesma, e continuou, que pena não haver uma amiga por perto, acho que estou precisando de uns conselhos.

- Escolhi o Fatouche, uma saladinha mista com croutons.

- Adorei. E pra beber?

- Suco de Laranja.

- Tá ótimo.

Ainda antes de a conta chegar, Jerônimo disse:

- Aimée, eu vou ao hotel somente para pegar minhas roupas e pagar a estadia. Fica aqui perto, você me acompanha?

- Eu vim ao Centro para comprar umas cortinas e acho que está ficando tarde para mim.

- Não vou prender você, juro.

- É subir, descer, e pagar a diária?

- Sim, tenho ainda que comprar a passagem de volta para Macaé pra poder embarcar.

- Tá bom, vamos.

Quando os dois chegaram ao quarto de hotel no terceiro pavimento, Jerônimo abriu a porta e fez gesto para que Carolina entrasse primeiro, adentrou em seguida e, de costas, fechou e trancou a porta. Ao se sentirem isolados no quarto, um súbito frisson acometeu o casal e os objetos foram se espalhando pelo chão inesperadamente. A bolsa, cuja alça Carolina sustinha sobre o ombro, foi a primeira a cair; a sandália fugiu automaticamente dos seus pés; com a ajuda de um pé e depois o outro, Jerônimo descalçou os sapatos e agarrou a moça num abraço apertado, deu-lhe um beijo cheio de comoção e em seguida afastou-se delicadamente, o suficiente para dizer em seu ouvido:

- Você está tão linda, cheirosa, sorridente, amável, um verdadeiro feitiço, eu não aguentei.

Aquela voz gutural assim tão coladinha ao seu ouvido, fê-la entender imediatamente o motivo da felicidade inusitada e a ligeira falta de ar que momentaneamente sentia.

- Eu já não conseguia mais resistir aos seus encantos. Tenho tanta culpa no cartório quanto você. Esquece isso.

Daí em diante foi a euforia, e as peças de roupas foram caindo ao chão feito confete: camisas, calça, saia, cueca, calcinha, ao mesmo tempo em que se agarraram e se precipitaram sobre a cama envolvidos pelo afã de dar e receber o maior prazer possível um do outro.

A relação amorosa foi afobada, entusiasmada, ardente, calorosa, gostosa, de mútuo prazer, plena, inesquecível, mas acabou.

- Que delicioso esse nosso encontro, você foi demais.

- Demais foi você, minha querida Carol, minha eterna Aimée, vai ser difícil te esquecer depois deste nosso momento tão gostoso.

- Acho melhor a gente apagar da memória o que aconteceu.

Fizeram uma rápida higiene do corpo e logo já estavam prontos para sair, não sem antes juntarem os lábios num beijo enternecedor. Pegaram um táxi na porta do hotel e trocaram números de telefone com promessas de se comunicarem. Ainda com intenção de comprar suas cortinas, no meio do caminho Carolina desceu, diante da estação Presidente Vargas do metrô. Jerônimo continuou viagem rumo a Rodoviária.

Haverá outro encontro?

Dilucas
Enviado por Dilucas em 22/09/2020
Reeditado em 17/07/2023
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