Conto das Terças-feiras – Menina mulher
Gilberto Carvalho Pereira - Fortaleza, 22/9/2020
Janaína tinha apenas 14 anos. Seus pais, idosos, não permitiam que a menina passasse do portão de casa para a calçada e lá permanecesse sequer um minuto sozinha. Diziam que não era seguro, que a molecada daquela época não respeitava ninguém. Era um ciúme doentio. A garota era uma graça, tez surpreendentemente branca, cabelos escuros e cacheados, nariz afilado e lábios bem desenhados. Uma perfeição de rosto.
A rua onde morava apresentava movimento regular de pessoas, sua extensão partia do centro da cidade vindo até um dos bairros de população de classe média a alta. Relativamente novo e pela existência de bons colégios, colégio militar, uma ou outra agência bancária, que antes se concentravam no centro da cidade, crescera rapidamente. Na sua via principal do bairro mansões estavam ali sendo construídas. Um imponente castelo fora erguido ainda no início do século XX. Havia pequenos conjuntos de casas conjugadas, onde habitavam antigos moradores, entre esses, homens que, por falta de instrução formal, dedicavam-se ao serviço braçal, como carpinteiros, pedreiros, pintores de parede, bombeiros hidráulicos etc. Novos ricos se preparavam para ocupar esses espaços, no entanto, como seus moradores não tinham documentos de posse, aqueles não logravam êxito em comprá-las.
Foi desse extrato social que surgiu, na vida de Janaína, Mário, de pouco mais de 20 anos de idade, sem profissão definida, fazia bico como ajudante de pintor de parede. Rapaz de boa aparência, aos olhos da menina Janaína era bonito, tinha vasta cabeleira sempre bem penteada e untada com brilhantina, e ornamentada com vistoso topete. De pele azeitonada, semelhante à dos indianos, Mário não se preocupava com isso. Embora de estatura mediana, o seu trabalho havia esculturado o seu corpo, parecia um atleta, o que lhe rendia os assédios das garotas da redondeza. Era uma figura realmente interessante.
Ao término de cada dia de trabalho, ele passava defronte à casa de Janaína, que já o observava há algum tempo. Escondida trás das frestas do portão que a separava da calçada, ela ficava ali até o seu galã passar. Queria chamar a sua atenção, mas não tinha coragem. Sabendo que os pais não aprovariam essa amizade, ela chorava baixinho quando ele desaparecia de sua vista. O coração ficava apertado, doía qual uma agulha furando o seu dedo. Ninguém conhecia aquele amor secreto, nem mesmo o amado.
Certa tarde, como estratégia para chamar a atenção do rapaz, Janaína jogou uma pequena bolsa com algumas flores e um bilhete: “amanhã pare para conversar comigo. Esperarei.” O rapaz apanhou a bolsa, tentou devolver, mas a garota se recusou a recebê-la. Apenas disse:
— É para você ler o bilhete que tem dentro.
Mário achou estranho aquilo, abriu a bolsinha, leu o bilhete e, olhando por uma das aberturas do portão, perguntou:
— Quantos anos você tem?
— Tenho dezessete anos.
— Não acredito em você.
— Vou fazer 16, disse a garota, já arrependida por ter mentido.
Não querendo mais prolongar a conversa, o rapaz saiu sem dizer mais nada. Achou que não ficaria bem papear com uma desconhecida, ainda mais, menor de idade. Vai que aparece um adulto, pai ou mãe, e me escorraça da porta deles, pensou Mário.
No outro dia, Janaína conseguira que a mãe a deixasse ficar em frente ao portão, sentada em uma cadeira, na companhia da empregada da casa. Um costume da época.
Naquele dia, no mesmo horário de sempre, o moço apontou longe, na calçada oposta onde se encontrava a garota. Decepcionada, ela se preparava para entrar quando o viu atravessar a rua e movimentar-se em sua direção. O nervosismo tomou conta da menina, ela não sabia se entrava ou permanecia ali.
— Boa tarde, falou Mário.
— Boa tarde, ela respondeu, demonstrando excitação.
O rapaz ficou impressionado com a beleza da garota. A sua jovialidade e timidez o desconsertaram. Não sabia o que dizer, mesmo acostumado a situações iguais a essa. Foi, então que Janaína tomou coragem, e cobriu-o de perguntas:
— Como é seu nome? Onde você mora? O que você faz?
— Você, por acaso, é da polícia? - perguntou ele em tom de brincadeira.
Ela, encabulada, abaixou a cabeça e acenou como querendo dizer “deixa pra lá”.
Conversaram mais um pouco, ele em pé e ela sentada, até que o pai chegou, deu boa tarde e entrou. Poucos minutos depois ela foi convidada a entrar, não era hora de menina ficar na porta conversando com estranhos.
No outro dia, no outro, e no outro, eles conversaram até pouco antes do pai dela chegar. A mãe já não se preocupava mais, desde que a empregada estivesse ao lado da filha. Esta, cada vez mais desenvolta, alegre e satisfeita da vida. Todos notaram a mudança e o pai, que nem desconfiava dos desses encontros, dizia:
— Essa menina está ficando uma moça. Já, já os rapazes vão fazer fila em nossa porta.
Quatro meses do primeiro encontro Janaína fugiu com Mário. Todos ficaram desesperados e se perguntavam:
— Como isso foi acontecer? A polícia foi acionada, mas não os encontrou.
Duas semanas depois o casal apareceu. Não havia mais nada a fazer, só preparar o casamento, apesar de não ser do gosto da família.