NOITE ALTA, CÉU RISONHO...

Nossas serenatas eram sempre às sextas e sábados, fora destes dias da semana somente em datas especiais como aniversário, regresso de uma longa viagem, reconquista de um amor perdido ou véspera de casamento. Em meados da década de 1960 em Curitiba, era raro um fim de semana que não realizássemos pelo menos meia dúzia de serenatas. Formávamos um feliz noneto: Zize (crooner), Zaquinha (crooner), Alexandre (crooner), Zeco (violão solo), Vavo (violão acompanhamento), Nine (violão acompanhamento e crooner), Adilson (afoxê), Arnaldo (afoxê) e Marcio (atabaque). O esquema era mais ou menos assim: algum conhecido apaixonado nos procurava e solicitava uma seresta para sua amada. Sempre com consideração e simpatia, procurávamos atender a todos os pedidos - dentro das nossas limitações, é claro – e para tanto agendávamos os endereços fornecidos, procurando colocá-los de forma racional, conforme a proximidade geográfica que havia entre eles. Nunca pensamos em remuneração, mas jamais desprezamos uma demonstração de gratidão, como um muito obrigado, um bule de café, ou uma batida de limão. Concedíamos ao solicitante a oportunidade de apontar algumas das músicas a serem cantadas, porém sem o compromisso de utilizá-las obrigatoriamente. Via-de-regra, a seleção efetuada era repetida em todas as serenatas daquela noite, com pequena variação justamente para incluir os pedidos particulares ou as peculiaridades de cada ocasião. As músicas que cantávamos? Eram seis ou sete para cada seresta, escolhidas dentre uma enorme variedade de melodias e ritmos que ensaiávamos, tendo em comum o romantismo e a pretensão de ser uma mais linda do que a outra: Boa Noite Amor, Lábios que Beijei, Fascinação, Lua Azul, Carinhoso, Esse Seu Olhar, Duas Contas, Menina-Moça, Eu Sei que Vou Te Amar, Se Todos Fossem Iguais a Você, A Noite do Meu Bem, Chão de Estrelas, A Estrela D’Alva, Brigas , Negue, El Dia que Me Quieras, Despierta, El Reloj, La Barca, Que Te Quiero, Buenas Noches Mi Amor, Aquellos Ojos Verdes, Solamente una vez, Creio em Ti, Come Sinfonia, Al Di La, Roberta, Amore Scusami, Se Piangi Se Ridi, Il Mondo, Io Che Non Vivo Senza Te, Annamaria, And I Love Her, If I Fell, Here There and Everywhere, Michelle, Unforgettable, My Love For You, Too Young, Are You Lonesome Tonight, Only You, Como é Grande o Meu Amor por Você, Gatinha Manhosa, Ternura, Foi Assim, Não Quero Ver Você Triste, e por aí vai...imaginem só o estrago que isso fazia nos corações das meninas..!
Cantávamos sob a janela do quarto da gentil senhorita, e a responsabilidade pelo posicionamento do grupo era do solicitante, que teoricamente conhecia bem os cômodos da casa dos – quem sabe? - futuros sogros. A confirmação de que estávamos sendo ouvidos era uma ligeira piscadela de luz no quarto da donzela. Mas quando desconfiávamos que a guria não havia sequer despertado, então era hora de pôr o ‘Zaquinha Voz de Trovão’ em ação, cantando a plenos pulmões o ‘Creio em Ti’ e acordando todo o quarteirão, ele que era o nosso cantor principal e possuidor de uma belíssima voz.
Começávamos depois da meia noite, e muitas vezes íamos até o alvorecer. Bastante desgastante era enfrentar os cachorros da casa, ora prontos a defender suas donzelas, ora dispostos a cantar conosco, uivando pra valer. Preveníamo-nos disso, exigindo do postulante que os trancafiasse antecipadamente no canil, e à menor desconfiança de que poderiam escapulir e nos atacar, desistíamos da empreitada e partíamos para um novo endereço. Outro problema não tão comum - porém mais desanimador - eram pais furiosos e irmãos ciumentos, que não aceitavam passivamente a oferta do mimo às suas filhas ou irmãs, e nos enfrentavam com grosserias e indelicadezas. Por duas vezes, até mesmo com arma de fogo nos ameaçaram hehehe...mas normalmente ocorria bem o contrário, famílias gentis que nos recebiam com gratidão e hospitalidade, brindando-nos ao final da apresentação com salgadinhos e caipirinha da boa. Outro problema sério eram os pernilongos e mosquitos pólvora, que por pouco não comprometiam o desempenho dos músicos, não fosse a rápida ação dos companheiros com as mãos desocupadas, sempre dispostos a afugentá-los ou a trucidá-los (de forma silenciosa) durante as apresentações. Por fim, o pior dos atrapalhos: a chuva. Nem iniciávamos as serestas em dias chuvosos, mas consolávamo-nos uns aos outros com nosso ditado favorito ‘Não há de ser nada, dias melhores virão’, só que na versão dos seresteiros: ‘Não há de serenata, dias melhores violão’! Então, aproveitávamos a noite chuvosa para ensaiar novas músicas na casa de alguém, ou em algum barzinho conhecido.
Nas férias, transferíamos o palco de atuação para o litoral. Geralmente, cantávamos em Matinhos e Guaratuba, e éramos bem conhecidos e estimados por lá. Mas fizemos memoráveis serenatas também em outras praias do Paraná e Santa Catarina, quando contávamos com a colaboração de músicos locais talentosos, dentre os quais destaco o Chico de Paranaguá, flautista de mão cheia que quando tocava fazia chorar até o nosso noneto; e o Gastão de Ubatuba, violeiro e cantor extraordinário, que interpretava como ninguém as músicas do Tim Maia. Nas praias, nosso repertório era ampliado e enriquecido com músicas temáticas como Prece ao Vento, Tammy, A Praia, Granello di Sabbia, Cuando Calienta el Sol, Foi a Noite, Nossos Momentos e outras mais, todas compostas por pessoas que amavam o mar. Sem sombra de dúvida, era delicioso cantar sob o murmúrio das ondas, no plácido e carismático silêncio da madrugada, principalmente quando se estava apaixonado...
Algumas vezes – muito raramente – no meio da serenata, por um tropeço banal ou palhaçada de alguém, a turma desandava a rir e não tinha quem conseguisse fazer-nos parar. O pretendente ficava desesperado, imaginando as consequências nefastas que colheria no outro dia com a namorada, e implorava para silenciarmos imediatamente, mas isso nos fazia rir mais ainda. Tínhamos que sair de fininho e terminar de rir lá fora, até que se esgotasse a vontade, antes de seguir para uma nova serenata ou encerrar de vez a noite. No dia seguinte, fazíamos um formal pedido de desculpas e tudo voltava ao normal, com a oferta de uma nova e reparadora serenata, em desagravo pelo papelão feito de forma não intencional na noite anterior.
Finalmente, não posso deixar de narrar a inusitada brincadeira que sofremos em uma das temporadas praianas, praticada em uma quente noite de verão. Estávamos fazendo uma serenata para a prima de um dos nossos companheiros, a seu pedido. Alegando tratar-se da música preferida dela, induziu-nos a cantar aquela canção, ‘Noite Cheia de Estrelas’, vocês se lembram da letra? _“Noite alta, céu risonho, a quietude é quase um sonho, o luar cai sobre a mata qual uma chuva de prata de raríssimo esplendor...”. Só que o sujeito era um tremendo gozador e havia preparado uma ‘surpresinha’ para nós, pois quando começamos: _”Noite alta, céu risonho...”, ele subiu rapidinho ao terraço do pavimento superior, e despejou lentamente sobre nós um penico cheio de água, cantando a sequência da canção: _”Lá vai mijo, sem-vergonha..!” . Hahahahaha, ainda bem que era água pura e estava calor pra burro...
(Marco Esmanhotto)
Marco Esmanhotto
Enviado por Marco Esmanhotto em 21/09/2020
Reeditado em 23/09/2020
Código do texto: T7068492
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