“O Sangue sempre fala mais alto”

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Eram quatro horas da manhã quando fui acordado por estranhos barulhos metálicos. Procurei identificar o som, parecia o de latas batendo. Levantei "Sonado" para ver o que estava acontecendo. Abri a porta de correr em venezianas em madeira, da sala para o deck, também de madeira. Vi com o maior espanto um gato totalmente preto. Um tição! Estava no primeiro degrau da escada de acesso ao tablado e me encarava estático com seus olhos dourados e grandes, realçados pelo seu "pretume". Simpático!

-Ah, é você que está fazendo esse barulhão, é? - falo candidamente.

O bichano continuou parado, encarando-me, rabo abanando de forma amigável. O barulho fora causado pelo andar sobre as calhas em chapas metálicas que estão sob o deck aguardando instalação. Estranhei, pois os gatos geralmente são silenciosos. Esse, porém, parecia meio estabanado.

Já tínhamos nos visto em um outro dia, mas fora um encontro menos amigável. Encontrei-o, à tarde, saindo por debaixo do deck do outro chalé ao lado do nosso. Também ficou parado me olhando e de repente saiu em disparada. Ali, simpatizei com ele, mas minha mulher não queria de jeito nenhum que desse "corda" para um gato. Pensei que fosse por ser preto. E dizem que não somos supersticiosos.

Ele, então, deitou-se languidamente, como uma esfinge, imponente, quase soberano, com seu rabo balançando calmamente. Olhava-me com uma certa indiferença disfarçada, típico dos gatos e a cada frase que lhe dizia, fechava seus olhos como que gostando.

- Deitou agora, seu safado! Vai ficar aí, é? Olha que a patroa vem e te enxota, hein! - ele continuou impávido e em sua empáfia mantinha-se ali, calmo.

Em dado momento levantou-se e fez menção de se aproximar.

-Nãooo!

Estacou o movimento por segundos e de cabeça baixa me olhava com seus olhos reflexivos, como uma estátua. Só seu rabo se mexia, como uma cobra.

Ele ou ela, era magrinho e de pelo judiado, tipicamente de gato de rua, parecendo ser ainda um filhote. Fiquei com pena.

Tentou se aproximar novamente querendo entrar em casa e se aninhar comigo, me adotar.

-Nãooo, não posso te deixar entrar, infelizmente. Boa noite, "pretume"!

Fechei a porta e vi pelas aletas da veneziana que deitou bem perto dela, talvez, na expectativa de que eu pudesse abri-la novamente.

Lembrei-me do que minha mãe me contara, que quando menina os pegava na rua e os levava para casa escondidos de sua mãe, para cuidá-los. Seu avô a ajudava na empreitada. A mãe descobria e os devolvia para a rua, deixando seu avô brabo! Desaforadamente, virava-se de costas para a sua filha, curvava o seu tronco e lhe mostrava as nádegas!

Deitei e dormi. Na manhã seguinte, acordei com a expectativa de ver se o meu novo amigo ainda me aguardava. Não estava. Deve ter ido para outro lugar, onde lhe tenham dado guarida.

Na noite seguinte, duas horas da madrugada, desço as escadas do mezanino, vou até a porta e o vejo sentadinho perto dela. Abro-a devagar, ele se volta para mim com aquele seu olhar fixo. Encaramo-nos.

- Voltou seu safadinho! Eu sabia que lhe encontraria de novo. Estamos iniciando uma relação amistosa, não é? -pergunto.

Saí da porta para o deck e ele desceu os três degraus da escada, parando alguns metros à frente. Fiquei junto da escada, em pé. Ao me sentar no patamar, andou mais alguns metros, ficando perto da escada do outro chalé.

-Vem, vem aqui "tiçãozinho", vem! - falo delicadamente.

Deitou-se sobre as quatro patas, naquela posição características dos gatos, alerta para qualquer situação. Olhava-me atento, mas tranquilo.

Ficamos assim por alguns minutos, cada um na expectativa da ação do outro. Levantei-me, ele, a cabeça e me olhou atento. Não mexia o rabo. Fui até as cadeiras de praia no canto oposto da escada do deck e me sentei em uma delas, esperando que ele viesse até mim, como no dia anterior. Ficou lá, na mesma posição e eu sentado, só conseguindo ver as pontas de suas orelhas. Ficamos novamente no aguardo de um e do outro, como gato e rato!

O tempo passou, levantei-me e fui para a porta, me olhou, virou-se e saiu calmamente, com seu andar macio para a noite, sabendo que eu iria dormir.

Fechei a porta e deitei mais feliz, por saber que iniciávamos uma relação amigável.

Vou ver na próxima madrugada se o barulhento aparece e quem sabe, dou comida escondido, para que nossos laços se estreitem.

Como diz minha mãe: "o sangue sempre fala mais alto".

Não nego, estou fazendo exatamente com ela fazia!

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 21/09/2020
Código do texto: T7068428
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