"Trapezista"
202
Na minha infância, morei em duas cidades do interior do estado de São Paulo, Leme e Campinas. Meu pai era sócio do meu tio em uma rede de cinemas. Tinham salas no interior e mudamos para Leme para que pudesse vistoriá-las em Araras, Rio Claro, Mococa, entre outras.
Morávamos em casa e terreno amplos com jabuticabeiras, mangueiras, galinhas, mais parecendo um sitio. Ficava em uma avenida movimentada, com tráfego de carros e caminhões, principalmente os de cana de açúcar. Passavam em baixa velocidade e eu corria atrás para me dependurar nas que saiam, suas pontas, da carroceria. Uma farra! Era 1958, ano do primeiro Campeonato Mundial do Brasil. Tinha 4 anos.
Passava os dias sem camisa, de calção e descalço. Era um paraíso. Pelo quintal de terra batida, imenso para mim, andava com a bicicleta da minha irmã por ele todo, perseguindo as galinhas e os galos, desviando das árvores, apostando corrida com as pombas. Usava-a sem ela saber, aproveitava quando ia para a escola. Doce infância!
Um dia, o grosso arame, preso entre duas árvores que servia de varal, estava sem roupas e suspenso com uma vara de bambu. Passei pedalando sem vê-lo e fui esganado pelo fio metálico na altura do meu pescoço, caindo da bicicleta e ficando com um enorme vergão na garganta. Foi um susto e tanto, fiquei com dificuldades para respirar por uns dias. Coisas de moleque traquina e inquieto que era!
No galinheiro, pegava das galinhas seus ovos. Eram minhas amigas, dava-lhes nomes e conversávamos. Ás vezes, quando não encontrava alguma ciscando pelo quintal, perguntava para a Dona Angelina, a caseira que morava conosco com o seu marido, seu Luiz, ou o "Gigio":
- Cadê a "rajadinha"?
-Ela deve ter voado "pro" vizinho. O "Gigio" já foi ver "pra" trazer ela de volta!
Claro que ela tinha se tornado o almoço daquele dia. Eu, na minha santa inocência, não percebi por algum tempo, mas depois, notava que algumas delas desapareciam coincidentemente quando tínhamos frango nas refeições.
-Mãe, essa não é a "pintadinha"? Não vi mais ela no quintal.
-Não, seu pai comprou e a Dona Angelina cozinhou!
-E como ela desapareceu, foi igual a "rajadinha"?
Não me enganaram mais e fiquei um tempão sem comer frango.
Na cozinha, tínhamos um enorme fogão a lenha, no qual Dona Angelina fazia a sua comida deliciosa. Adorava o seu arroz com feijão e comia três pratos só deles. Também, quando faltava luz, tomava banho de bacia com a água esquentada nele. Uma delícia! Tinha tanto "cascão" nos joelhos e cotovelos, que era esfregado com "caco de telha", pois a terra vermelha impregnava. A bucha de chuchu, não fazia efeito. Não se usava shampoo ou condicionar, mas sim, sabão de coco no corpo e na cabeça. Tudo muito simples!
O meu cabelo era cortado como o do Ronaldo fenômeno - carequinha com uma franja na testa. Era assim naquela época.
Em um final de dia, minha mãe me mandou tomar banho de chuveiro elétrico no banheiro. Fiquei horas com ele ligado, brincando na banheira. Enchi-a e mergulhei naquela água barrenta que meu corpo produziu. Era pequeno, mas levado e criativo. Ao ver o cano do chuveiro no alto quis ficar balançando o corpo como um trapezista que vira no circo. Comecei a pular com os dois braços esticados para alcançá-lo, e conseguia por centímetros segurá-lo. Meus dedos agarravam o cano quase que deslizando. Isso tudo com o chuveiro elétrico ligado! Um perigo, pois poderia tomar um belo de um choque. Mas parece que, quando somos criança, os anjos, sabedores de nossas peraltices perigosas nos protegem mais ainda.
Mas nesse dia, eles estavam meio que cansados de mim, pois tinha feito várias traquinagens já e titubearam, e ao pular novamente com os braços esticados, não alcancei o cano e cai de queixo na banheira, como um saco de batatas. "Pam", um som surdo e forte dor no queixo. Olhei atordoado e vi sangue escorrendo pelo meu corpo, tingindo a cerâmica de marrom avermelhado. Havia esvaziado a banheira, se cheia estivesse, poderia ter suavizado a queda. Toquei no local que doía e meus dedos ficaram escuros.
- Socorro, mãe, socorro Dona Angelina! - berrava aos prantos.
Dona Angelina entrou no banheiro e viu o sangue escorrer com vigor, me pegou e me enrolou na toalha, colocando um papel higiênico no corte. Minha mãe entrou também e com o olhar espantado, perguntou:
-O que aconteceu, como cortou o queixo? Vamos, vou te levar na farmácia.
Fomos, mas o farmacêutico não podia dar os pontos, o corte era grande e teríamos que ir ao Pronto Socorro. Lá, o médico me perguntou como eu tinha feito um corte tão extenso e respondi que escorregara na banheira. Olhou-me incrédulo, desconfiado da minha história, assim como minha mãe. Deu os pontos, que naquela época eram com grampos metálicos e não com linha. Um enorme curativo se avolumou no meu queixo.
Dias depois, iríamos comemorar, desfilando em carro aberto e vestidos de jogadores da seleção canarinho,os campeões mundiais pela primeira vez. Eu era o goleiro e teria que ir com aquele enorme queixo branco, comprovando minha frustrada tentativa de ser trapezista. Infância, a idade mágica!
https://blog-do-cera.webnode.com/