Uma delícia!
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Os japoneses, em sua cultura e sabedoria milenar, têm hábitos que os destacam pelo tom ritualístico de algumas ações cotidianas, como sentar em um local para observar e ouvir os sons da natureza como o cair da chuva, o despertar das flores ou o silêncio da noite.
Hoje, sentado na varanda do chalé, em dia de chuva forte e densa, observava-a como os orientais, reportando-me ao meu tempo de menino e das brincadeiras de rua, momentos em que ela era um acontecimento e tanto. Em silêncio, as lembranças avivaram.
Sentava na sarjeta, com os pés afundados na enxurrada que a água criava, observando o caleidoscópio de cores amarronzadas nos redemoinhos que ela formava ao encontrar os meus tornozelos. Ficava um tempo ali, absorto, todo molhado, imaginando o que teria dentro daquela água.
Jogávamos futebol com ela encharcando a bola de "capotão", que "virava" uma verdadeira pedra ao ser chutada. Descíamos a rampa da minha casa de carrinho de rolimã para ver nossas pernas molharem com os jatos que as rodas faziam. Alguns iam de bicicleta, chegando ao final da rua em derrapagem, às vezes descontroladas, e acidentes aconteciam. Imaginávamos estar em uma pista de corrida toda molhada e outras situações que só um dia de chuva proporcionava. Adorávamos a chuva.
Ao voltarmos para casa, molhados da cabeça aos pés, literalmente, nossas mães nos davam aquela bronca tradicional, nos mandavam para o chuveiro quente, uma delícia, depois colocávamos uma roupa bem gostosa e quente, outra delícia, e tomávamos chá de limão com mel para não "gripar". Não ficávamos doentes, acredito que as doenças eram mais fracas ou que éramos mais fortes.
Quando ela caia à noite, na hora de dormir, deliciosamente nos embalava e aconchegava para que a nossa imaginação libertasse os nossos sonhos. E ao acordarmos com ela, no dia seguinte, mais gostoso era estarmos debaixo das cobertas quentes. Uma delícia!
Fiquei assim largado dentro das minhas memórias molhadas, escutando a sua toada tranquilizante, agradecendo aos nipônicos pelo cultivo das coisas simples e belas, como uma chuva que cai na nossa lembrança.
Uma delícia!
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