SE EU MORRER NÃO SE ASSUSTE

Era muito diferente a vida das crianças curitibanas nas décadas de 1950 e 1960. A parte monótona e sofrida era ir pra aula, pelo clima pesteado e a obrigação de levantar as seis da madruga tremendo de frio e quase desmaiando de sono, e ainda por cima ter de lavar o rosto com água gelada, pra acordar bem. A briga com os irmãos pelo uso prioritário do banheiro era líquida e certa, servindo como instrumento eficaz no processo de acordar.
Morávamos nas Mercês e estudávamos no Santa Maria, ao lado do Teatro Guaíra. Meu pai revezava com um vizinho - seu Arnaldo - a viagem até o colégio. Um dia era um, outro dia era o outro, o carro empanturrado com os filhos somados. Lembro-me bem da preocupação dele toda santa e alternada manhã:_“Levantem depressa, não me façam passar vergonha com o Arnaldo, ele já deve estar aí na frente..!”. Os filhos do Arnaldo eram estudiosos, um deles até passou no ITA. Meus irmãos e eu – bem, não éramos maus alunos, mas os nossos corações vagavam longe dos livros e só queríamos mesmo estar com os piás da vizinhança para empinar pipas, fazer e pegar balões, jogar bolinha de búrico (gude), bete ao ombro, futebol, futebol de botão, ping-pong, tique, ludo real, xadrez, pega-varetas, brincar de mãe, polícia&ladrão, pula-cela, cabra-cega...enfim, tudo que pintasse e acontecesse era muito, mas muito bem-vindo. Além disso, tínhamos um vizinho rico e quase sempre receptivo, que morava num baita terreno no quarteirão da minha casa, onde tinha – sem exagero - piscina, gramado de futebol, cavalo, carrinho elétrico, pomar e tanque pra pescar, imaginem tudo isso em um só lote residencial!
Mas o bom mesmo era o nosso time de futebol. Nós, guris da rua, nos reunimos e fundamos uma importantíssima agremiação: o Tinguís Futebol Clube, já ouviram falar? Tínhamos o nosso próprio campinho de futebol, na esquina da Brigadeiro Franco com a Tinguís (hoje Isaías Bevilaqua, mas nunca cresci o suficiente pra aceitar a mudança de nome). Fazíamos campeonatos valendo taça com times dos bairros próximos, e sempre que podíamos também batíamos bola no campo do Poty, localizado onde hoje é a Praça 29 de Março. No alto dos meus doze anos, nunca esqueço a sensação de impotência que me invadia quando eu sumia no gramado de tamanho oficial, e só de imaginar ficava estafado antes mesmo de dar aquele pique de trocentos metros até o gol adversário. Também não esqueço o cheiro de cerveja vazando do bar ali existente, nem da algazarra dos frequentadores, sempre roxos de tanto encher a cara.
Naquela época, cada mês do ano tinha a sua atividade própria: junho eram os balões (chinesinho, caixa, travesseiro, mimosa, pião, chupeta, cartola de padre e estrela); agosto eram as pipas (quadrada, redonda, estrela, papagaio, pandorga, vera-cruz, bidê e foguete), que a todas indiscriminadamente chamávamos de ”raias”.
Nas férias de julho e janeiro era praia, quatro horas de sofrida viagem até Matinhos, onde meu avô tinha uma casa de madeira com latrina externa. Uma vez, fui com minha mãe e dois irmãos e passei mal à noite, por causa da alergia causada pela poeira acumulada, que trancou as minhas vias respiratórias a ponto de quase me impedir de respirar. Lembro bem do desespero da mãe, naquele tempo em que mulher não era nada sem o marido por perto. Meu pai tinha ficado em Curitiba e por telefone disse pra ela retornar o mais rápido possível, já no primeiro ônibus. Foi o que ela fez, apavorada. Antes de embarcarmos na rodoviária eu estava me sentindo muito mal, mas na inocência e bondade infantil só tinha olhos e coração para enxergar o sofrimento dela. Pensei que não iria sobreviver, e foi então que disse pra mãe aquela frase que ficou célebre na família toda e que virou motivo de gozação de irmãos e primos:_ “Se eu morrer não se assuste!”.
Mas Deus tinha planos de uma vida longa pra mim, e no momento em que o ônibus da Sul Americana transpunha a Serra do Mar, minhas vias respiratórias se dilataram e o ar voltou a inflar prazerosamente os meus pulmões. Lembro bem daquela feliz sensação de renascimento!
Essa história permanece viva em minha família até hoje, tão somente pela nobre frase por mim proferida na angústia, e que agora meus filhos me devolvem só pra fazer graça, quando vitimados por uma simples gripe ou um leve machucado.
(Marco Esmanhotto)