A Segunda Infância

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Fui ver a minha mãe em sua nova morada. Antes ela vivia na casa de minha irmã, e a relação chegou a um impasse. Estava insuportável para todos. Decidimos que era hora de, infelizmente, colocá-la em uma casa de saúde, pois o estresse estava sendo maléfico para nós. Conheço bem o temperamento forte de minha mãe e com o avançar da idade deve ter recrudescido mais e mais. É uma intransigência justificável, está com 96 anos e tem esse direito.

Minha irmã mora no município de Holambra. E a casa de saúde para a qual nossa mãe se mudou é de holandeses. Ao saber que iria para lá, ficou radiante de felicidade, dizendo que teria seu cantinho e não incomodaria mais ninguém. Minha irmã, com remorso de colocá-la lá, ficou atônita com essa reação. Achava que a ela pareceria que a estávamos descartando. Mas, inesperadamente para nós, a sua visão não parecia ser essa. Estava feliz!

Por coincidência, antes dessa mudança, comprara eu um livro sobre um idoso que redigiu um diário de sua experiência em um asilo na Holanda. O protagonista Hendrik Groen fez seu relato com muito humor e sarcasmo, mas com momentos tragicômicos também. Por extrema coincidência e similaridade ocorria agora o mesmo conosco.

Sai bem cedo da cidade de SP. Era quinta-feira, dia de rodízio do carro que meu filho me emprestara para a ida. Havia combinado com a minha irmã de tomarmos café juntos, em sua casa, e irmos depois ver a Dona Maria em seu cantinho novo. Cheguei lá pelas oito horas para o café da manhã e conversamos bastante.

- Ela está ótima! Você vai ver! Feliz, alegre e acredite, usando cadeira de rodas que execrava. Lembra-se! -falou minha irmã.

- Que bom! Então fico feliz e tranquilo.

- Nunca imaginei que seria assim. Achava que não iria se adaptar pelo "geniozinho" que tem. Mas está ótima mesmo. Até o meu remorso passou.

- Está sendo bom para todos. É o que importa - digo.

Saímos para a visita. Ao chegar encontrei um local plano, bem arborizado e com várias casinhas lado a lado, como em um condomínio. Junto à casa de Saúde, no mesmo terreno, estas casas são de pessoas que moram lá. É uma comunidade.

O cantinho de nossa mãe é um quarto térreo avarandado, com uma sobre porta em tela para os mosquitos não entrarem. Fica bem na entrada e pertence ao corpo do edifício da Casa de Saúde. Parei o carro no gramado, em frente à sua porta, e bati.

Ela estava deitada e acordou de chofre, dizendo:

- Oi! É você Fernandinho? - perguntou com a sua voz rouca e cansada. Esperava-me ansiosa.

- Sou eu sim, Dona Maria. Vim conhecer o seu novo cantinho - repondo vendo-a pela porta de tela, fechada por dentro.

- Ah, aqui é uma maravilha. Quanto tempo, hein?

Ao mesmo tempo, entra no quarto a cuidadora e diz:

- Bom dia, Dona Maria! Tudo bem? Seu filho chegou? Está mais feliz agora, né?

- Ôoo, estava com saudades. Faz tempo que não o vejo.

- Vamos ao banheiro para a senhora poder passear com ele? Ela se levanta com a ajuda da moça para ir ao banheiro. Enquanto isso fomos conhecer as instalações da Casa de Saúde.

O prédio é uma construção sólida, longa e térrea, com corredores em que se situam os quartos. Na parte central fica a cozinha e a sala de almoço, logo depois tem uma varanda ladeada por um enorme gramado com árvores frondosas. Há um enorme flamboyant abraçando parte do prédio com a sombra de sua copa larga. Fora a enorme quantidade de flores espalhadas pelos muitos canteiros ao longo do jardim e do prédio, pois é a Cidade das Flores, conhecida em todo o país.

Sou apresentado às pessoas que trabalham no local, todas simpáticas, solicitas, educadas e sempre com um sorriso no rosto. Percebe-se que gostam do que fazem.

Chegamos ao novo cantinho de nossa mãe e a encontramos sentada na cama, sorridente. O quarto com banheiro não é grande, mas adequado, com a sua cama, sua cômoda de roupas, sua TV e uma prateleira sobre a qual estão fotos nossas de várias épocas. Nostálgico!

- E aí Dona Maria, que cantinho gostoso, hein? Muito bom!

- Ah, é ótimo aqui, estou ótima! Foi a melhor coisa que vocês fizeram para mim! Tenho meu cantinho, não atrapalho ninguém.

- Que bom, fico feliz! - digo, sentado na cama ao seu lado, dando-lhe um abraço carinhoso, sentindo seu cheirinho gostoso de cabelo lavado com shampoo infantil.

- Vamos dar uma volta pelo local? - pergunta-nos minha irmã.

- Sim, vamos! Quero te apresentar para eles aqui - responde minha mãe.

Pegamos a cadeira de rodas, ela se sentou e saímos pelo corredor dos quartos em direção à varanda. Lá, outros moradores no local nos olham com curiosidade:

- Bom dia, este aqui é o meu filho! Veio me visitar com a minha filha que vocês já conhecem - fala para todos, entusiasmada e feliz. Algumas nos respondem, outras têm olhares perdidos ou falas desconexas. A velhice é triste. Mas todos os lúcidos, respondem com sorrisos, que retribuo desejando bom dia. Simpática a turminha.

Descemos a rua principal do condomínio, com as casinhas alinhadas ao longo de suas ruelas, com seus gramados, arvores e flores. Lindo o lugar!

Ficamos mais de meia hora andando, eu empurrando a sua cadeira de rodas, ela alegre e feliz, falando do seu dia a dia.

- Aqui tem atividade o dia todo, de manhã e de tarde. Você não fica parada. Tem passeios também. E tenho amigos e amigas. Estou muito feliz. Foi a melhor coisa que vocês fizeram para mim, agora no fim da minha vida.

- Que bom, mãe! Fico muito feliz também. Você estando bem, nós também estamos.

- Sim mãe, é o que importa para nós - complementa a minha irmã.

Subimos uma rampa que nos levou ao salão das atividades e um grupo fazia exercícios de alongamentos e pesos para que não ficassem com os músculos atrofiados.

- Bom dia, este aqui é o meu filho - fala ela a todos, que respondem educadamente.

Seguimos até a varanda, era a hora do café do meio da manhã.

-Temos cinco refeições por dia, esta é a segunda, depois vem o almoço. No meio da tarde, depois da soneca, tem o café da tarde, depois a janta. É muito boa a comida aqui, bem caseira. Você vai almoçar comigo?

- Sim mãe, quero experimentar - respondo.

Chegamos à varanda e tomamos café. Depois, a fisiatra, uma holandesa com seus 1,85 m, preparava uma atividade para outro grupo, colocando todos em uma roda. Há holandeses e brasileiros, alguns em cadeiras de rodas simples, outros em elétricas, outros ainda com andadores e poucos sem nada. Uma babilônia de línguas era falada, minha mãe que falava alemão, o recorda ali com algumas amigas. Ótimo exercício para a sua cabeça ainda muito lúcida.

Começou a atividade. A fisiatra jogava uma enorme bexiga, cheia de ar, para ser rebatida por todos, com as mãos, para que não caísse ao chão. Empenhavam-se para rebater a bola o mais alto possível, alegres, felizes e com muitas risadas e brincadeiras. Eu apreciava a alegria do grupo. Era contagiante. Em alguns momentos eu participava, estava atrás de minha mãe e a bola passava por ela, pois, está enxergando pouco, então eu rebatia para o meio da roda. Eram crianças novamente. Paramos para aguardar o almoço.

- Muito gostoso esse jogo de balão de ar, parece que estamos em uma festa de criança, como aquelas que você fazia para os seus filhos. As crianças ficavam jogando a bexiga de ar "pra" cima e não deixavam cair no chão. Lembra-se? Como nós aqui, não é mesmo? - comenta feliz.

- Lembro sim, mãe. Bons tempos!

- Agora, eu estou como na segunda infância aqui, não é?

- Sim mãe, a infância sempre é inesquecível.

Voltei feliz por encontrar a minha mãe com o espírito alegre e risonho de uma criança, na sua viva segunda infância.

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 14/09/2020
Código do texto: T7062897
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