Segredão

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- Fer, agora o contato com a mamãe na casa de saúde será só por telefone. Não estão mais permitindo visitas por causa da epidemia. Passo o número e liga lá que as moças passam o aparelho para ela. Quer saber de você, está com saudades! - diz minha irmã em conversa telefônica.

Minha mãe está há quase um mês nesta casa de saúde na Holambra, cidade do interior do estado de São Paulo, famosa pelas suas flores. Não houve mais condições de conviver junto com a minha irmã e o marido e a solução foi colocá-la nessa instituição de idosos. Está muito feliz e agradecida. Disse-nos na última visita , antes da epidemia, que foi a melhor coisa que lhe proporcionamos. Assim tem o seu canto e não incomoda mais ninguém, segundo ela.

- Vou ligar sim. - falo para minha irmã.

Desligo e comento a conversa com minha mulher. Ela pergunta com seu olhar curioso:

- Quem sabe se ela tem alguma lembrança da gripe espanhola no inicio do século passado. O avós do meu ex-marido morreram nessa epidemia. Ela é daquela época e tenho curiosidade em saber como foi.

- Ligamos agora então. - digo.

Disco o número e atende uma das cuidadoras:

- Bom dia, Casa de Saúde! - diz a atendente.

- Bom dia! Tudo bem? Aqui é o filho da dona Maria. Gostaria de falar com ela.

- Tudo bem. Sim, vou levar o telefone, ela está na varanda com o grupo.

Escuto passos, algumas vozes ao longe e minha mãe começa a falar.

- Oi, tudo bem com você? Sarou da gripe? - fala com a sua voz rouca e cansada, respirando com dificuldade. Minha mulher está ao meu lado ouvindo a conversa.

- Tudo bem, mãe! Já sarei do resfriado. Era só o "coroa" vírus. - brinco com ela, que ri.

- Coroa, é? Mas você não é coroa, "tá" mocinho ainda! - diz, brincalhona como sempre.

- Passadinho , mãe.

Conversamos, ela contanto que está bem, mas preocupada com a epidemia.

- Mãe, a Lisa vai falar com você agora, saber como você está.

-Ah, quero saber se você está se comportando! - com o seu cacoete de mãe eterna.

Começam a conversar. As duas são cúmplices para me colocar na linha. Sempre fui rebelde e ela diz que preciso ter quem coloque meus dois pés em uma botina só, ou seja me enquadrar! O papo seguiu neste tom, até minha mulher perguntar sobre a questão da gripe:

- Maria, você se lembra da gripe espanhola? Foi pelos anos 1918, 1920.

- Eu não! Nasci em 1924! Então não posso me lembrar, não é mesmo? - responde rindo.

Minha mulher fica quieta por segundos. Eu começo a rir com gosto pela perspicácia da resposta de minha mãe de 96 anos, como a sua memória e lucidez invejável. E claro, seu bom humor. Minha mulher ri também.

- O que lembro é que os corpos eram tantos que eram levados de carrinho de mão para uma cova comum e jogavam cal para desinfetar.

Enquanto falavam, entrei no Google para saber como fora essa epidemia, pois sabia que matara muitos milhões de pessoas no mundo todo .Entrei na Wikipédia:

"A gripe espanhola, também conhecida como gripe de 1918, foi uma pandemia do vírus influenza incomumente mortal. De janeiro de 1918 a dezembro de 1920, infectou 500 milhões de pessoas, cerca de um quarto da população mundial na época. Estima-se que o número de mortos esteja entre 17 milhões a 50 milhões, e possivelmente até 100 milhões, tornando-a uma das epidemias mais mortais da história da humanidade. A gripe espanhola foi a primeira de duas pandemias causadas pelo influenzavirus H1N1, sendo a segunda ocorrida em 2009."

"A maioria dos surtos de gripe mata desproporcionalmente os mais jovens e os mais velhos, com uma taxa de sobrevivência mais alta entre os dois, mas a pandemia de gripe espanhola resultou em uma taxa de mortalidade acima do esperado para adultos jovens. Os cientistas ofereceram várias explicações possíveis para esta alta taxa de mortalidade. Algumas análises mostraram que o vírus foi particularmente mortal por desencadear uma tempestade de citocinas, que destrói o sistema imunológico mais forte de adultos jovens. Por outro lado, uma análise de 2007 de revistas médicas do período da pandemia descobriu que a infecção viral não era mais agressiva que as estirpes anteriores de influenza. Em vez disso, asseveraram que a desnutrição, falta de higiene e os acampamentos médicos e hospitais superlotados promoveram uma superinfecção bacteriana, responsável pela alta mortalidade."

Pelo descrito e comparando-se com a pandemia que estamos enfrentando agora , talvez a mortandade fosse muito maior que as que têm ocorrido hoje. Ainda bem!

A conversa delas continua com muito humor e gozações para comigo. Depois me despeço:

-Tchau mama querida, beijão tá, se cuida!

-Tudo de bom pra vocês. Um abração bem forte e um "segredão" bem, bem grande "pra" você, " tá"! - "Segredão" é a forma que usa para dizer que me ama.

- Sim mãe, um "segredão bem grande" pra você também.

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 12/09/2020
Código do texto: T7061150
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