Conto: Assustando um ladrão
Dona Marlene lutava contra uma compulsão alimentar há anos. Já estava acima do peso e seu médico a orientava em cada consulta, que para seu bem deveria parar de comer sem estar com fome. Ela respondia:
_Mas, eu só como quando estou com fome doutor. Olho para aquela comida maravilhosa, aqueles sabores sem igual e não consigo deixar pra lá, preciso comer, preciso me saciar, e isso me faz sentir bem, feliz e realizada.
_Dona Marlene, é importante que a senhora entenda que isso não é normal. Que a senhora está comendo muito mais que outras pessoas na sua idade e sua altura comem. Na verdade, a senhora come para se dar uma compensação por algo, não é mesmo? Se passar um dia ruim, quer comer para se compensar, para se alegrar, mas a comida não pode ser responsável por te alegrar. Seus filhos relatam que já viram a senhora comer uma travessa de sobremesa sozinha em um almoço de domingo. Por isso quero que a senhora entenda que isso está errado. Que suas taxas de glicose e colesterol estão desreguladas devido a essa compulsão alimentar. Portanto, dona Marlene, quero te encaminhar para uma psicóloga amiga minha, a Sabrina, que vai te ajudar muito nesse sentido, mas eu continuarei acompanhando suas taxas e seu peso.
_Doutor, o senhor está sendo muito injusto comigo. Eu não comi a travessa toda. Algumas pessoas tinham se servido de sobremesa antes que eu comesse todo o resto. E quem te contou que se eu passar um dia ruim, eu como para me compensar?
_Ninguém me contou senhora. É um sintoma de quem sofre de compulsão alimentar. Na verdade isso está relacionado à quando éramos um bebê, e ao chorar nos davam leite. Às vezes continuamos com essa lógica em mente de que tudo se resolve com alimento. É preciso ter força para quebrar esse ciclo. Eu e minha amiga Sabrina vamos te ajudar a vencer, mas a senhora precisa querer.
_Eu não quero ir à psicóloga nenhuma, e não sou louca, eu só como a mais porque minhas comidas são deliciosas, isso não é loucura, é a coisa mais certa a se fazer. Isso é um insulto.
Sem que o doutor pudesse explicar mais nada, dona Marlene levantou-se com movimentos bruscos pegou sua bolsa e saiu batendo forte a porta do consultório. Ao chegar a sua casa digitou uma mensagem de texto e enviou para seus três filhos com o seguinte conteúdo:
“_Sua cambada de ingratos. Andaram enchendo a cabeça do doutor José contra mim. Essa merda de glicose e colesterol altos não me definem. Eu sou muito mais do que essas taxas. Eu quero ser feliz e só consigo ser feliz comendo. Só comida me satisfaz. Então, me deixem em paz. Me deixem ser feliz. E não venham aqui e nem me liguem. Estou chateada com vocês três. Nem parece que foram criados por mim, uma mãe tão dedicada.”
Depois de enviar a mensagem desaforada começou a chorar e para parar de chorar começou a comer bombons. Resultado: comia, chorava e falava sozinha ao mesmo tempo: _Ninguém me entende... Para eles todos é muito fácil... Fizeram um complô contra mim. É capaz de alguém vir aqui levar minhas comidas... Eu vou jogar água em cada um que aparecer. Não vou deixar entrar. – Entre lágrimas, proferia palavras meio sem sentido e suspirava, mas não deixava de engolir seus bombons que nem sequer saboreava. Insatisfeita continuava a dizer: _Eu só quero ser feliz. Que droga de vida. Nem posso comer em paz.
Já com o rosto avermelhado de tanto chorar, tomou um banho, colocou seu pijama mais largo, confortável e pensou então no que comeria no jantar. Refletiu em como seu dia foi difícil, e que merecia uma boa refeição depois de tanto sofrimento. Resolveu então, comer um frango assado inteiro. Pegou-o temperado na geladeira e colocou-o imediatamente no forno. Era o frango que marinava para o almoço de domingo com os filhos, mas ela merecia oras, depois de tudo o que passou. Chegou à conclusão de que o frango demoraria para assar, portanto resolveu fazer uma sopa de legumes. Assim se seus filhos perguntassem o que ela comeu, responderia: “_Uma sopa cheia de legumes bem saudável, estou mudando!” – Que sacada! Seu telefone começou a tocar. Era sua filha mais nova, ela simplesmente ignorou e pensou: “_Toma essa, não te atendo, intrometida!” E voltou a chorar, balbuciando: “_Que tipo de ser humano me tornei? Falo sozinha, brigo com quem nem está aqui para se defender, estou com raiva de todos, e só como, como, como. Não é assim que quero ser”.
Decidiu-se com certeza e pronunciou em voz alta tentando convencer-se: “_Não vou comer esse frango assado. A partir de hoje eu mudei, não tenho mais compulsão alimentar. Vou comer somente a sopa de legumes e dormir”. E foram exatamente essas palavras que repetiu ao telefone para sua filha que agora resolveu atender.
Assim dona Marlene fez. E o frango? Após esfriar colocou inteirinho na geladeira e foi deitar-se apenas com a sopa no estômago. Começou a cochilar, mas só pensava no frango assado. Proibiu-se de pensar nele e voltou a dormir. Sonhou então, que comia um imenso pedaço bem suculento de frango assado, que até lambuzava suas mãos de tão cheio de temperos e molhos. Acordou aflita, sentou-se rapidamente na cama e começou a brigar consigo falando em voz alta:
“_Que absurdo mulher. Vai dormir, vai sonhar com os anjos do céu, com qualquer outra coisa que não seja comida. Será possível? Faça o favor de dormir e acordar só amanhã. Isso é uma ordem! - Deitou-se como uma pedra e ficou bem imóvel tentando dormir.
Começou então, a viver uma guerra interna. Sua mente só idealizava as melhores comidas da face da Terra, uma após a outra, o que já estava em nível de tortura. Resolveu então, de uma vez por todas que comeria o bendito frango, mas ele seria a última comida fora de hora.
O relógio da parede marcava três horas da manhã quando ela levantou-se ainda meio dormindo. Nesse exato momento, algo inesperado aconteceu: Um ladrão entrou na casa de dona Marlene, que sonambulava pela cozinha roubando comida da geladeira. Ela primeiro pegou o frango assado, e depois de comê-lo intensamente como se estivesse há dias sem se alimentar, partiu para um pudim. Foi aí que ela percebeu a presença do ladrão, que a olhava estarrecido, em decorrência de toda aquela comilança voraz. Dona Marlene por sua vez, o convidou para comer pudim.
_Vem rapaz, sente-se aqui. Você não quer comer um pedaço desse pudim? – Perguntou em negativa, com esperança de que ele não aceitasse para sobrar mais para ela. E continuou: _Eu não tenho nada de valor mesmo, para que você possa roubar.
O ladrão, não estava tão assustado por ter sido descoberto, tanto como estava chocado em ver dona Marlene comer, então, escapou o mais depressa possível por uma janela que ela havia esquecido aberta.
Ao lembrar-se do semblante tenso e do olhar assustado do ladrão, dona Marlene chegou à conclusão de que essa compulsão alimentar era algo realmente horrível e assustador de se ver. Foi como se virasse uma chave em seus pensamentos, que a direcionavam a mudar de vida. Ela então disse em voz alta:
_Eu preciso cuidar de mim. Eu não mereço viver assim. Chega!