Leite de Mococa

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Fui acordado pelo ardido de uma picada na minha perna. Formigas cortadeiras estavam me atacando naquela noite. Eram pretas, gordas, com garras grossas e antenas balouçantes.

-Não é possível! Mordido por uma formiga - penso, esmagando-a com tapa na perna que ficou com um vermelhão.

Levantei e vi várias andando pelo piso. Peguei o spray mata inseto e o apliquei com ira sobre elas, que ficaram desnorteadas e correram sem direção.

Sai para fora da casa para ver de onde vinham. Uma trilha estreita de caminho limpo se destacava no gramado. Carregavam em fila indiana, pedaços de folhas, gravetos e as demais coisas que encontravam e cortavam pelo caminho até a entrada, ou "olho" do formigueiro. Preparavam-se para o inverno.

- Caramba, com certeza vou ter que comprar, amanhã, umas iscas de veneno para acabar com esse formigueiro - resmungo inconformado, sentindo ainda o ardor da picada.

Na manhã seguinte, depois de passar a noite mal dormida enfrentando-as, fui até uma agropecuária comprar o granulado.

- A vingança tarda, mas não falha - vão ver só, praguejei no caminho.

Chego à loja e um rapaz solicito vem ao meu encontro.

- Bom dia amigo, do que precisas? -com um sotaque caraterístico de ilhéu Florianopolitano, de "manézinho" como são chamados.

- Bom dia, tudo bem. Preciso do veneno para matar as formigas pretas que me atacaram essa noite.

-É mesmo amigo? - pergunta o atendente curioso.

-Sim, fui mordido por uma delas na perna e arde até agora! - respondo.

-Ainda bem que não "ti" levaram "pro" formigueiro "né" amigo! - brinca ele comigo.

-Ah, minha mulher pediu também um saco de terra adubada! - completo.

-Quantos pacotes de isca "queres" amigo?

-Dez! Vou acabar com todas elas hoje, com certeza! - respondo enfático

- Ainda bem que não ti levaram pro formigueiro - brinca ele comigo.

Alheio a nossa conversa, estava o dono da loja com o olhar fixo em seu celular, sentado no balcão do caixa.

O jovem trouxe os dez pacotinhos e foi buscar o saco de terra. Fiquei em pé junto ao balcão com o dono a minha frente como uma estátua, focado em seu aparelho celular. Puxei conversa:

- Essas formigas são um problema não?

- Pois é, antigamente tinha pouca. Hoje com esse mundo de pessoas morando pra cá, aumentaram muito - responde olhando-me, deixando um pouco de fixar o celular. Era de meia idade, cabelos curtos espetados e pretos, olhos negros, pele amorenada e usava óculos. Falava como o rapaz, na forma dos "manés": rápido, cantando e comendo as letras.

- Ah, é descendente dos açorianos? - pergunto.

- Sim, sim, sou nascido e criado aqui, tenho sangue de português, mas distante. "Manezinho da ilha", claro!

Seguimos conversando. Ele contou simpático e animado alguns casos de sua vida, das dificuldades de sua época de menino, quando a pobreza era grande e viviam da roça e da pesca, trocando peixes por utensílios, comida, carne, etc.

-És de onde? De São Paulo pelo teu falar, não é mesmo? - pergunta-me.

-Sim, moro aqui faz cinco anos. Mas frequento a ilha desde os anos setenta.

-Ah, então sabes como era, muito mato e poucas casas.

-Sim. Acampei muito na areia das dunas, o que hoje é impossível de se fazer.

Continuou animado com suas histórias e em determinado momento disse:

- O mais gostoso daquela época, para nós guris era o final do ano. Uma senhora muito boa e caridosa nos dava presentes de Natal. Íamos até a sua casa e ganhávamos uma bola de futebol de plástico, balas e pacotes de leite em pó de Mococa.

- Leite de Mococa?

- Sim, em pacotes com ele duro. A gente abria e ia pra casa comendo, parecia paçoca. Uma delicia era o leite de Mococa, bem docinho, com a vaquinha na embalagem. Era a nossa alegria.

- Interessante. Mococa é uma cidade no interior de São Paulo em que fabricam esse leite.

- Ahhh, São Paulo! A gente tinha a mania de falá que era paulista. Era bacana querer ser de lá. Mas sabes que a fala de "manezinho" não dá pra disfarçar - diz sorrindo.

Curioso o que contou, pois, coincidentemente, quando menino, fui bastante para essa cidade, nos idos dos anos sessenta. Meu pai tinha um cinema lá e íamos de fusca. A viagem era longa, feita em pista única, na maior parte do trecho e demorava quase um dia para chegar. No andar de cima do prédio assobradado havia um apartamento junto da sala de projeção, no qual ficávamos, seu piso era em tábuas de madeira e fazia aqueles estalidos típicos ao se caminhar sobre ele. O ilhéu reavivou a minha memória.

Volta o rapaz da loja e também se interessa pelo assunto. Mas finalizo dizendo:

- Bom, a conversa está boa, mas tenho que acabar com as formigas lá em casa. Quanto deu tudo? - finalizo pagando.

-Boa sorte, amigo! - desejam-me os dois "manés".

Volto para casa ávido por lançar as iscas no caminho das formigas cortadeiras, tendo a certeza que dormiria melhor naquela noite, sem qualquer nova picada. E também seguro de que não me levariam para o formigueiro.

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 09/09/2020
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