Cavalinho

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Não tenho dormido bem ou não durmo bem ultimamente, é fato. Acordo pelo menos duas a três vezes por noite para ir ao banheiro, o que é uma chatice, pois em muitos casos a preguiça atrapalha. Coisas dos anos de vida.

Quando pequeno, entre os meus quatro a cinco anos, dormia bem, mas às vezes acordava no meio da noite, saía da cama com meu travesseiro arrastando no chão e caminhava até o quarto dos meus pais. Meu pai roncava como um urso, de tremer o chão da casa (pergunto-me como minha mãe aguentava?), parava no portal e chamava minha mãe baixinho, acordando-a. Ela pedia para eu deitar com ela. Era bom e reconfortante, com aquela deliciosa sensação de segurança e proteção pueril.

Depois, mais velho, não ia mais para o quarto deles. Agitado, ficava de quatro na cama, com a cabeça entre os braços, indo para frente e para trás em movimentos rítmicos, batendo a cabeça com força no espaldar de madeira da cama. Ficava na pureza do mundinho da minha cabecinha, maquinando minhas questões, dúvidas e significados da vida. Vida que desabrochava, ainda com seus mistérios a serem descobertos. Era a minha forma, maluca talvez, de me interiorizar. Era bom, pois minha imaginação se elevava ao ponto de ficar tão absorto, que os movimentos aumentavam instintivamente, e o bater da cabeça causava um som alto e forte na cama que se arrastava no chão, acordando minha mãe, que vinha ao meu quarto saber o que acontecia. Meu pai, como um bom urso, hibernava com sonoridade.

- O que está fazendo, Fernandinho? Que barulhão é este? - perguntava atônita.

Eu seguia batendo a cabeça incessantemente. Me encontrava longe, em meu círculo interior, curioso para saber o que viria. Acordava do meu transe com a sua pergunta e respondia:

-Ah mãe, estou pensando. Perdi o sono e faço assim para poder me cansar e voltar a dormir.

-Então agora para de bobagem e volte a dormir! Vai ficar com os miolos moles, com essa "bateção" de cabeça na cama, menino!

Os anos se passaram, e agora por dormir mal e acordar frequentemente durante a noite, voltei a fazer o "cavalinho", como chamava essa ação na meninice.

Acordei pelas duas da manhã e o sono havia se ido. Então, fiquei de quatro com a cabeça nos travesseiros por proteção, na posição igual daquela época, pois o espaldar e a cama são em alvenaria, não arrasta ou faz barulho. Agora dormimos separado eu e minha mulher. Coisas da idade.

Comecei a ir para frente e para trás fazendo o mesmo movimento e novamente, ao balanço das batidas surdas na parede, a imaginação começou a fluir solta. Remoí os meus pensamentos por um bom tempo, até sentir que as pernas e costas não eram mais como naqueles tempos. Cansei e tive que voltar a me deitar. Dormi logo de cara, gostoso, com a mesma sensação do passado.

De manhã, lembrei-me do que fizera e perguntei-me se os meus miolos talvez pudessem estar moles. Mas não importava, pois, as lembranças e as sensações foram deliciosas e calmantes. Mas menos misteriosas, infelizmente, pois muitos daqueles mistérios se tornaram cotidianos, perderam o encanto.

Voltarei a fazer sempre o "cavalinho" nestas situações insones e espero que não venha a acordar a minha mulher, pois, talvez pense igual a minha mãe sobre o amolecer dos miolos.

Quem sabe, talvez por isso, tenha um parafuso a menos, que deve ter se afrouxado naquele tempo pela "bateção" da cabeça. Coisas da infância.

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 05/09/2020
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