PAPAI, LIMPA O MEU BUMBUM
 

A sapiência popular costuma advogar que ser mãe é padecer no paraíso. Em relação a esta questão não vou discutir o mérito, mas e o que dizer do pai? É isso mesmo! Pai, pra quem não sabe, costuma padecer junto com a mãe, se não igual, às vezes padece muito mais.

A autoridade do pai é discutível e inconstante, principalmente se a prole pela qual ele deve exercer as suas prerrogativas é do sexo feminino. Por que afirmo isso? Porque sou pai e tenho uma filha de 5 anos que é a razão do meu viver. Da teoria da qual os pais costumam ser bem mais benevolentes com as filhas do que com os filhos, tenho experiência suficiente para defender tal tese. Acho que não sou uma exceção, sou regra geral.

Maysa, minha filha, tem por hábito desafiar minha autoridade de pai. Graças a Deus, o mesmo não ocorre com a mãe. Quando eu peço, por exemplo, a ela para escovar os dentes antes de dormir, a criaturinha enrola o mais que pode. Faz de conta que não é com ela e utiliza técnicas para se esquivar da higiene bucal, porém com a mãe, não! A coisa é diferente! Minha esposa, mesmo lá da cozinha, diz apenas uma vez: “filha, vá escovar os dentes”. Daí a Maysa, de um pulo, larga o que estiver fazendo e vai resoluta para o banheiro. É algo realmente impressionante! Vocês precisam ver!

Cumpre registrar que minha esposa raramente lança mão de castigos físicos ou expedientes similares. Uma palmada ou outra pode até acontecer, mas como eu disse, é raro.

Amo demais a minha filha. Só quem é pai pode avaliar este sentimento. Do casal tradicional de pais, faço o papel brincalhão. Sou cúmplice nas roubadas que ela se mete, objetos que quebra, doces que come escondida antes do almoço. Sou mais sensível à chantagem emocional. Não posso vê-la chorar. É de cortar o coração. Sei que minha esposa a ama igualmente, mas a postura é diferente! Não são umas poucas lágrimas que convencem a mãe, por exemplo, a deixar ela ver a novela das nove. A mulher é firme. Não é não e pronto. Não cabe discussão e nem recurso em segunda instância, no caso, o pai “bonzinho.”

Por isso, esta cumplicidade, nos nivela, de vez em quando, como se fôssemos irmãos ou amigos. Por conta disso, costumo receber críticas da minha patroa, parentes e, infelizmente, até da sogra: “Você tem que ser mais duro com ela. Não deixa folgar, não.” - “Do jeito que a coisa vai, ela acaba fazendo cocô na tua cabeça”.

Pois bem, relato um fato interessante que ocorreu há pouco tempo que ilustra nossa relação. Estava eu trabalhando no computador e ouvi a Maysa falar alto: “papai, tô no banheiro.” Esta frase simples que, a principio, parece apenas afirmar que ela está no banheiro na verdade significa que eu devo rapidamente largar o que estiver fazendo e ir limpar o seu bumbum, caso a mãe não esteja em casa ou ocupada com atividades domésticas que exigem a sua atenção. Depois que faço o “serviço sujo” ela sai da toalete toda faceira. Nem sequer se digna a me dar um obrigado!

Pesquisei na internet que as aprendizagens das atividades de higiene pessoal das crianças costumam ocorrer entre 2 a 5 anos por imitação dos adultos. Maysa já estava com cinco anos e, preocupado, principalmente como ela se comportava no quesito “limpeza” na escolinha da educação infantil tive a seguinte conversa com a minha esposa.

— Querida, já está na hora da Maysa aprender a se limpar sozinha.

— Ela já sabe se limpar sozinha. Demora um pouco, mas ela se limpa sozinha.

— Como assim? Como é que ela me chama sempre pra limpá-la?

— Rs, rs, rs... porque tem um “trouxa” que faz o serviço mais rápido. Vê se ela me chama? Não. Ela tem que se virar sozinha. Já tá na hora.

Ora, minha filha estava me explorando! Fazendo uso da minha boa fé com relação aos cuidados paternos. Fiquei indignado. Então, decidi que aquilo ia acabar. Apesar de meu amor incondicional percebi que já estava na hora de me impor e ser mais respeitado. Da próxima vez que o fato ocorresse teria uma séria conversa com ela. Sim senhor.

No dia seguinte aconteceu de novo: “papai, tô no banheiro.”

Respirei fundo e entrei decidido no banheiro. Lá estava ela, como sempre, sentada no vaso sanitário, calcinha e pijama arriados até meia canela, pezinhos cruzadinhos sem encostar no piso, os dois cotovelos em cima das coxas que permitiam segurar o queixo com ambas as mãos. Aqueles olhinhos lindos voltaram-se para mim. Ajoelhei-me a sua frente. A conversa não ia ser fácil.

— Papai, limpa o meu bumbum? – ela me pediu com a voz bem mais doce do que era de costume. Parecia que ela estava adivinhando que eu iria criar problemas para resolver a sua situação.

— Filha, nós precisamos conversar. – Disse-lhe sério buscando expressar uma fisionomia circunspecta na intenção de corroborar o meu tom de voz.

Ela não se intimidou.

— Tá, papai, tá. Mas primeiro limpa o meu bumbum.

— Filha, meu amor, é sobre isso mesmo que eu quero te falar. Tá na hora de você se limpar sozinha. Você já é uma “mocinha”.

— Mas você sempre me limpa!

— Pois é, mas já está na hora de você se limpar sozinha.

— Mas papai, o papel higiênico fica longe de mim.

— E na escolinha? Como é que você faz?

— O papel fica pertinho.

— Ok, e quando eu não estou em casa? A tua mãe vem limpar o teu bumbum?

Ela ficou quieta. Baixou o olhar devagar. Fiquei comovido. Senti um aperto no coração. Ela ficou alguns segundos pensando no assunto. Em seguida, com os olhos marejados de lágrimas, a fisionomia triste me intimou.

— Papai, você não gosta mais de mim?

Nossa senhora! Aquilo me atingiu forte!

— Claro que gosto, filha. Eu te amo mas... mas... mas é que... que...

— Então, limpa o meu bumbum.

— Tá bom. Tá bom. Mas, olha, é a última vez, hein?

Pois é, está aí , não tenho vergonha de dizer. Fiz o serviço sujo novamente. Vocês precisavam ver o rostinho dela como se iluminou de felicidade. Parecia que tinha acabado de ganhar uma “Barbie”. Daí me posicionei, novamente de joelhos, na frente dela e fui enfático: “É a última vez, hein! Você ouviu bem, Maysa?”.

Ela não tomou conhecimento. Desceu do vaso sanitário, levantou a calcinha com a Hello Kity toda sorridente na frente. Levantou o pijama de bolinhas. Ajeitou o cabelo, empinou o narizinho, como quem dizia estar ofendida por minhas atitudes. Depois, olhou de soslaio para os dejetos dentro do vaso. Olhou de soslaio para a hidra, mecanismo, ao alcance de sua mão, que levaria os dejetos embora. Meu deu uma bitóca no rosto e, antes de sair, penso ter visto um sorriso de deboche ao me dizer:

— Papai, não esquece de dar a descarga, hein.

E saiu me deixando no banheiro de joelhos. Fiquei alguns segundos, como costumam dizer os meus alunos, no “vácuo”.

Levantei-me e dei a descarga.

“Fluuusshhhh... chuuuuuaaaaaaaa....”

 


 


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* Este texto foi escrito em 2007, quando minha
filha Maysa tinha 5 anos. Hoje ela está com 18
e esclareço que perdeu o costume de me chamar
ao banheiro.

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* Sei que este texto está mais para uma crônica
de costumes do que conto, mas prefiro deixar
meus escritos tudo dentro de um baú só.
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Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 03/09/2020
Reeditado em 10/09/2020
Código do texto: T7053379
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