Conto das Terças-feiras – Rede de relacionamento sofrível
Gilberto Carvalho Pereira - Fortaleza, 1/09/2020
Recém-chegada ao seu novo local de morada, situação que a incomodava muito, pois tivera que deixar o amplo apartamento por um de 69 metros quadrados, em condomínio fechado constituído de quatro torres, onde se encontram distribuídas, entre proprietários e inquilinos, mais de trezentas famílias, Karina estava em estado de estresse prolongado. A mistura complexa de hormônios e produtos químicos como a adrenalina, cortisol e norepinefrina (também chamada de noradrelalina), que vinha invadindo seu corpo, a deixava, algumas vezes, desatenta, levando-a ao esquecimento ou ao negligenciamento.
Foi o que aconteceu com ela semana anterior. Ao passar quase toda a noite acordada, pensando nos problemas que de uma hora para outra apareceram em sua vida, só conseguiu conciliar o sono depois das três horas da madrugada. Seu despertar foi perturbador. Acordou além da hora de ir trabalhar, o que a fez se preparar às pressas. Trocou de roupa, colocou as fezes do seu cachorro na porta do apartamento, pelo lado de fora, na intenção de colocá-la na lixeira do prédio, localizada a duas portas depois da sua, tomou café ainda em pé, escreveu bilhete para os dois filhos, que ainda dormiam, e saiu correndo, rumo ao trabalho.
Lá pelas onze horas do dia, ao consultar o seu celular, percebeu que havia uma quantidade expressiva de mensagens no WhatsApp, postadas no grupo do condomínio, todas referenciando o lixo deixado na porta de seu apartamento. Foi quando ela se lembrou de ter esquecido as fezes de seu cachorro na porta do apartamento.
Ao repassar cada uma das postagens, percebeu que havia fotos da cena do crime, círculos chamativos marcando o local, xingamentos simples e compostos por palavras chulas e ofensivas. Rapidamente telefonou para o filho que ficara em casa e pediu:
— Alberto, apanhe um saco de lixo que deixei na porta pelo lado de fora e jogue na lixeira do prédio.
— Certo mãe, vou fazer isso – confirmou o garoto de dez anos.
Infelizmente ele não sabia que a lixeira ficava no segundo compartimento disponibilizado para esse fim. Ao abrir a primeira porta, não vendo nenhum depósito para lixo, colocou o que carregava encostado em uma das paredes do primeiro compartimento encontrado. Dando-se por satisfeito, voltou para casa feliz por ter atendido ao pedido da mãe. Agora ele sabia onde encontrar a lixeira.
Ao retornar do almoço, Karina consultou o seu celular. Mais uma vez se deparou com outra quantidade de adjetivos dirigidos a ela. Expressões como: se na porta é assim, imagine dentro de casa; é uma imunda; nojenta; merece uma multa bem alta; se for inquilina, expulsa; não tem vergonha; deve ser uma qualquer. Ninguém a conhecia, nem mesmo a vizinhança mais próxima, ela sempre saía cedo de casa, pois trabalhava longe e voltava tarde. Os filhos iam e voltavam de condução escolar. Estavam acostumados a esse regime, e ela confiava neles. O maior tomava conta do menor.
Bastante entristecida pelo ocorrido, consultou algumas amigas do trabalho e do prédio, sobre preparar uma resposta a tudo aquilo que escreveram sobre ela. Queria pedir desculpas, perdão, mas estava tão chocada que não sabia como começar. Resolveu ir para casa.
Já refeita do cansaço do estafante dia, tomou um banho demorado, passou uma suave lavanda no corpo, vestiu a camisola, sentou-se à beira da cama, fez sua oração diária, respirou fundo e pegou o celular. Abriu no grupo do condomínio e escreveu:
— Boa noite a todas e todos. Estou passando essa mensagem para, humildemente pedir perdão pelo acontecido hoje. Sou Karina, há apenas duas semanas neste prédio, moro no terceiro andar com meus dois filhos, menores de idade, e mais ninguém.
Deu uma pausa, revisou o que escrevera e continuou:
— Não sou o que me pintaram. Trabalho, sou responsável, minha casa está sempre em ordem, limpa e arrumada. Nessa manhã, por ter dormido pessimamente, devido a problemas pessoais, que agora são irrelevantes relatar, antes de estar pronta para sair deixei as fezes do meu cachorrinho na minha porta, pelo lado de fora. Eu apanharia por ocasião de minha saída para o escritório. Infelizmente esqueci. Lá chegando, deparei-me com as mensagens em meu celular. Li coisas horríveis ao meu respeito, de gente que, tenho certeza, nem me conhece. Rapidamente telefonei para o meu filho e o orientei a como proceder. Lamentavelmente ele desconhecia o local da lixeira, deixando o que levara no primeiro compartimento.
— Novamente peço mil desculpas pelo ocorrido, boa noite!
Karina recebeu algumas mensagens de desculpas, outras apenas respondendo o boa noite. Em seguida, recostou-se no travesseiro, menos preocupada e disse para si mesma:
— Esta noite eu quero dormir cedo e bastante. Amanhã será outro dia! – fechou os olhos e dormiu.