ARMANDO, O MANEZINHO PRODÍGIO
Esta é a história de um jovem açoriano e a saga de sua família diante da pandemia de coronavírus. Mas, também, as surpresas positivas da literatura chegando pelas ondas da internet.
Armando é aquele manezinho típico. A mistura das raças branca e índia produziu indivíduos exóticos. O menino de cabelo curto, moreno, olhos azuis, aos quatorze anos já era disputado pelas mocinhas do primeiro grau da Escola Severo Honorato da Costa, no Pântano do Sul. Apesar de modesta, a escola possuía computadores, o que pesara na escolha da matrícula.
O pai, pescador de tradição, mantinha Armando na escola por causa das feiras artesanais e para formar o menino num grande “armador de barcos”.
Seu Ataíde Cardoso era homem enérgico, mas não abria mão da preservação da cultura açoriana. Parte do sustento da família provinha da pesca artesanal.
Dona Tainá Cardoso era aquela mãe coruja. O seu maior medo era o filho enveredar para as drogas. A mulher da casa era o arrimo da família. Por décadas trabalhava na Pousada do Pântano, ali no bairro mesmo. Já era considerada parte da família dos proprietários.
Os anos de ginásio na Escola Honorato da Costa foram tempos de graça para Armandinho. O menino de bom comportamento, mostrava qualidades cognitivas diferenciadas para sua idade e os pais recebiam os elogios por tabela.
— Este menino é bom em textos, hein! Organiza sujeito, predicado e complemento como ninguém, diziam as professoras — Nem parece que é filho de pescador.
Mas as gentis professoras não sabiam de tudo. Na rotina do jovem Armando o mar era o grande provador. Passava inúmeros finais de tarde e noites a dentro dividindo as costelas do barco com o pai em busca dos peixes da enseada. Moravam na rua Joaquim Neves, próximo à saída para a praia. Ali o pai tinha um rancho, herdado do avô, no qual hospedava o barco, uma canoa grande batizada de Espírito Santo. Não se pode precisar quantos perigos este moço passou até hoje.
E assim seguia a rotina do adolescente mané que gostava de ler acima de tudo.
Transferiu-se, agora, para a Escola de ensino médio João Amaro Cordeiro, no Morro das Pedras. Chamava mais ainda a atenção dos mestres. Dominava a lógica gramatical e a sintaxe como ninguém. Com somente dezessete anos já mostrava ambição. Sabia tudo de peixes, pois era o seu dia-a-dia, mas prometia:
— Professora, assim como tem o Saramago em Portugal, eu serei um dia o “Sal amargo” do Brasil. E ria-se disto.
Aproximava-se agora a conclusão do segundo grau. Armandinho já havia conquistado os mestres. Afeiçoaram-se tanto ao rapaz que um dia, em secreto, decidiram conhecer onde morava aquela carismática criatura. Foram tomados de enorme surpresa. Uma casa extremamente simples, um único televisor e pasmem... o rapaz sequer tinha um computador pessoal para estudar.
Ao chegar o fechamento do ano e a formatura, junto com rasgados elogios e excelente média o corpo docente presenteou Armando com um computador de última geração, os melhores softwares e ainda prometeram instalar linha de acesso internet em sua casa.
Em janeiro de 2020 Armando completaria os seus dezoito anos e com eles a emancipação para concursos e empregos. Uma equipe de técnicos a mando da escola supriu de acesso internet sua humilde residência.
Pronto! O circuito estava fechado. A mãe e o pai passaram a ficar preocupados com tanto tempo de computador e internet. Mas... como cumpria bem as demais tarefas, fazer o quê!?
Entrementes, a partir do mês de março o mundo viraria de cabeça para baixo. Um vento negro vindo do Oriente traria consigo o quarto cavaleiro do apocalipse. Um vírus mortal havia varrido a Europa e os Estados Unidos e agora assolava o Brasil.
Mais de vinte mil mortos no país. O Sul fora transformado numa grande necrópole. Rotinas e comportamentos foram alterados. Regulamentações e cuidados por parte de toda a sociedade civil. Famílias obedecendo ao isolamento. Era a Covid-19 e seus desdobramentos.
A família do senhor Ataíde foi atingida em cheio. Com a decretação da quarentena, pai e filho não puderam sair à pesca por quarenta e cinco dias. O estoque de peixe no congelador findou. Armandinho já sentia o pai irritar-se. A senhora Tainá ficava mais e mais apreensiva. A Pousada do Pântano não tinha hóspedes há dois meses.
E a doença não recuava, ao contrário, a nível Brasil ainda estava em tendência de crescida. Agora estavam todos em casa, num ambiente de ansiedade. Reclusos. Paralisados.
O senhor Ataíde pensava: — Não há um lestinho para nos esperançar... uma novidade. Mas... eis que surge uma luz. Novo Decreto municipal liberando a pesca.
Imediatamente Ataíde e o filho lançam-se ao mar. Sempre na boquinha da noite. Foram em uma, duas, três, chegaram a seis investidas no mar. Mas...algo incrível estava ocorrendo. Netuno dera ordem aos peixes para recolherem-se em isolamento marinho. Só podia ser, pensava o senhor Ataíde. Voltaram para casa para entabular suas reflexões a respeito.
Armandinho atirou-se no PC para investigar o problema. Começou a ficar novamente muito tempo sobre a máquina. A mãe e o pai irritaram-se simultaneamente. A mãe esbravejou:
— Armandinho meu filho. Não está vendo o que acontece? Estamos quase morrendo à míngua e fica você aí, só tricotando com este notebook.
O rapaz sentiu-se ofendido. Saiu de lado, deu boa-noite, disparou para o quarto. Nem desligou a máquina.
No outro dia pela manhã os pais levantaram primeiro. Perto das oito horas caiu uma ligação de celular para a senhora Tainá. Recebeu a ligação, falou... depois ficou muda. Congelada. Petrificada. Branca.
— O que houve mulher!? Perguntou Ataíde.
— Fui demitida da Pousada... E pôs-se a soluçar.
O senhor Ataíde ficou em silêncio. Só meneava a cabeça de um lado para o outro. Era de se esperar. Talvez o pior efeito da Covid-19, a quebradeira. Agora seriam obrigados a pedir o auxílio emergencial do governo, pensou.
Antes que Armando chegasse, Ataíde começou a andar de um lado para o outro na casa. Atônito. Aproximou-se do laptop. Bateu em qualquer tecla. Apareceu luz na tela e um texto. Só decifrou que tinha um valor: R$ 5.000,00. Ficou curioso. Agora queria saber se, além de tudo o que acontecia, o filho ainda estava devendo dinheiro de droga ou algo parecido.
Não tinha jeito. Para saber só chamando a esposa que sabia melhor de computador. Chamou!
Dona Tainá, ainda com os olhos marejados da notícia do desemprego olhou a tela e começou a ler.
— Querido você não vai acreditar!
— O que foi mulher, diz logo!
— Este documento é um aviso de premiação. Armandinho foi premiado no concurso literário Monteiro Lobato, da cidade de Taubaté, São Paulo. Concorreu no gênero “crônicas”, alcançando o primeiro lugar e um prêmio líquido de R$ 5.000,00.
O senhor Ataíde desmontou! Levantou a mão espalmada escondendo a testa, deixou escorrer duas lágrimas. Era como se o vento leste, excepcionalmente, trouxesse um cardume de tainhas. Neste momento Armandinho apareceu. Sua mãe deu-lhe um abraço repentino. Ele não entendia o porquê daquela comoção.
— É isto que você tem feito estes dias todos, meu filho? Perguntou a mãe.
— Isto o quê mãe?
— Os concursos literários. Nós vimos em sua máquina. Vimos uma premiação. Muito, muito maior que o próprio auxílio do governo. E bem na hora que sua mãe foi dispensada da Pousada.
— Lamento pela perda do emprego, mãe. Mas já que viram vou contar tudo.
Já faz algum tempo que procuro estas oportunidades, desde os dezessete anos. Precisei esperar os dezoito, para, de fato, me inscrever. É a novidade da internet. Pode-se enviar as obras sem sair da cidade de origem. Qual vocês viram? O edital Monteiro Lobato? Estou inscrito em mais dois: no 18º. prêmio literário Paulo Setúbal, de Tatuí, SP e no V concurso Bunkyo de contos de São Paulo. Em todos já enviei as obras concorrentes.
Todos aqueles anos em que valorizei a vida escolar, cada esquema, cada regra gramatical, cada aprendizado. Tudo tudo... tudo usado agora. Como um arsenal guardado.
Em período de pandemia, onde todos estão fechando as portas e a Pousada do Pântano é só um exemplo, a literatura é uma porta que se abre através dos concursos.
Hoje pai e mãe, sem querer vocês descobriram uma grande transformação: “Armando Cardoso, o manezinho da ilha, está deixando de ser pescador para ser caçador. E caçador de Editais”.
Quando Armando terminou sua fala, seu pai e sua mãe, emocionados, juntaram-se a ele num abraço apertado e cheio de gratidão.
Venceriam os tempos sombrios da pandemia, sim, embarcando no talento surpresa do único filho que Deus lhe dera.