A Maçã

Aquela maçã estava no centro da mesa como qualquer coisa que está no centro de algo. Uma parede, um muro que nos separa em uma equidistância imperdoável pela sua indiferença, ou promiscuidade. A sua simples presença como objeto de desejo entreposta entre duas pessoas fazia com que sua natureza não fosse neutra... dir-se-ia, entretanto sabemos que não é verdade, que alguém colocou essa maçã exatamente nesse local numa alusão empobrecida da queda.

De um lado, tínhamos o pai de família em seu silêncio imperial a manifestar-se numa leitura desinteressada de um jornal. Do outro, a criança, um menino a quem a altura da mesa havia sido um obstáculo recém transposto. Ainda assim, aquele bloco de madeira perfeitamente talhado onde circunscrita pousava a apetitosa fruta lhe parecia uma planície deserta que ao fundo agigantava a silhueta de um gigante colossal de cujo olhar nada escapa. Era como se aquele menino nascesse já fadado a um existencialismo crasso, pois a primeira compreensão que tinha de si mesmo era a sua pequenez e fragilidade diante daquele que o criava.

Junto à mesa, no móvel da cozinha, uma Bíblia aberta carregava o ambiente de uma sacralidade pouco devota, mas deveras temente, com suas letras a expor as verdades antigas. O menino sabia alguns versículos de cor; o pai lhe ensinara alguns belíssimos que falavam sobre amor e sacrifício, sobre perdão, entretanto o folhear do jornal e o seu barulho crepitante, aliada à falta de comunicação aqui vista lhe remetiam a outros. Principalmente os de obediência e silêncio. E era confuso, porque parecia que os versos sobre amor, sobre cuidado que o pai sempre lhe dizia, os fazia como se ele falasse de si. Mas era nos versos severos que a imagem estava estampada: “Não desfaleças diante da correção do SENHOR”, “Lembra-te que Deus está no céu e tu estás na terra, portanto sejam poucas as tuas palavras”.

“Sejam poucas as tuas palavras...” Era o que mais lhe soava na cabeça...

“Lembra-te que teu pai está na cabeceira da mesa e teus pés sequer tocam o chão quando te sentas na cadeira”. Não seria melhor, então, ir simplesmente lá fora e brincar no quintal enquanto a mãe chega? Ou pegar um livro do Robinson Crusoé e folheá-lo para dar a impressão que era isso que queria e não esta vontade doida de pegar aquela maçã, a única maçã da casa, e devorá-la como quem devora algum fruto proibido?

Mas qual é o pai que, pedindo-lhe pão o seu filho, lhe daria uma pedra? O pão nosso de cada dia não nos daria hoje? E tudo que o Pai tem não seria “meu”? Entretanto por que aquelas mãos que folheavam o jornal do dia lhe pareciam tão fechadas?

E enquanto permanecia imóvel sentado na cadeira, virou-se a ver o quintal com pé de goiaba em flor. Um vento suave soprava e sacudia as folhas crespas enquanto um pardal permanecia pousado num dos galhos. Olharam-se e o pardal voou. Talvez sendo pardal não se preocupasse tanto...

Tique. Taque. Tique. Taque. Uma respirada seca. O jornal que vira a página. O vento que soprava. A mãe que não chegava. Tique. Taque. Tique. Taque. Tentou lembrar de algo bom. Mas a maçã permanecia no centro da mesa como qualquer coisa que está no centro de algo. E então lembrou-se: O Reino do céu é tomado a força.

Súbito estendeu o braço e parte do corpo para pegá-la. O pai, sem tirar os olhos do jornal, mas lembrando-se da maçã também estendeu a sua. E as duas se tocaram em desigual disputa. Os dedos frágeis e pequenos contra a mão inteira de um homem, e dura coisa é cair nas mãos dos homens.

O filho, então, segurou com a força pequenina que tinha e clamou: “Me dá, pai, eu peguei primeiro!”, mas de nada lhe valeu. Com um tapa afastou a mão da criança e puxou para si o que a si já pertencia e disse: “Primeiro os mais velhos”.

E enquanto isso o sol se punha no horizonte e as trevas iam cobrindo a face do abismo.