Amor (23.08.2020)

Eu tinha notado minha filha mais calada durante um tempo, sempre perguntava o que ela estava sentindo, com todo o carinho do mundo, pois sei como essa fase é delicada... E, embora ela não quisesse me dizer (talvez por vergonha?), eu mesmo assim ficava com ela no quarto, nem que fosse só sentada na beira da cama e fazendo carinho nas costas dela, que subiam e desciam abruptamente a cada soluço.

Com o rosto escondido no travesseiro e um soluço ou outro escapando por ser forte demais. E ela talvez não quisesse chorar demais perto de mim... Não sei, muito de ser mãe está permeado de indecisões e preocupações com o que ainda não aconteceu...

Dividi a situação com meu marido e conversamos longamente sobre isso durante vários dias. Nosso filho mais novo um dia até chegou falando que vira outras meninas da turma dela esbarrarem nela ao ponto de derrubarem o lanche que ela estava na mão, ou mesmo que ninguém sentava perto dela nas mesas do refeitório.

Troquei um olhar significativo com meu marido nesse momento e disse para o nosso príncipe:

- Oh, meu amor, você está preocupado com ela, não está?

- Sim, mamãe, é como se ela não tivesse amigos e eu fiquei pensando se eu também não tivesse e acho que eu seria bem triste, então ela tá assim agora e não quero ver ela triste – ele sempre fora muito sábio para seus 7 anos de idade.

- Tudo bem, campeão – meu marido disse, também olhando nosso filho nos olhos. Estávamos sentados no sofá da sala, ele veio sentar-se entre nós e disse, muito sério, que queria contar pra gente alguma coisa, uma coisa que tinha visto na escola. Nossa princesa estava no quarto, no andar de cima, lendo. – Nós vamos resolver, ok? Você foi muito corajoso em ter vindo aqui contar pra gente.

- Vocês prometem? Porque ontem eu fui ao quarto dela pra saber se ela queria brincar comigo e ela passou a mão no rosto bem rápido assim – e repetiu o gesto da irmã, claramente enxugando lágrimas. – E aí sorriu pra mim, dizendo que tinha que estudar e veio até se ajoelhar perto de mim pra falar melhor comigo, como vocês fazem.

Ela sempre fora assim, não queria demonstrar fraqueza, por medo de que nos preocupássemos muito com ela. Por isso eu agradecia todos os dias a Deus pelos filhos que Ele nos dera. Estávamos ainda conversando os três quando ouvimos que ela descia as escadas, agora também de pijama e então meu marido foi até o pé da escada e disse:

- Atenção, senhora e senhores, a princesa deste castelo está entrando no salão de baile, por favor, recebam-na com todo amor e carinho que temos por ela.

Nosso filho pulou do meu colo e foi abraçar a irmã, ao passo que eu e meu marido fizemos o mesmo. Foi um abraço demorado e pude sentir o corpo dela novamente sendo sacudido por um soluço.

- Eu preciso contar uma coisa pra vocês – ela disse, de um jeito muito tímido, e então sentamos todos no chão da sala, em cima do carpete felpudo, para conversarmos.

Chorei ao ouvir o que ela tinha a dizer. Me recusei terminantemente a fazer o que minha mãe fez na minha época, que foi simplesmente sair de perto por não querer ouvir. Também não pude deixar de lembrar da minha época de escola, em que acontecia a mesma coisa comigo e como eu me sentia mal. Mas eu não tinha ninguém em quem me apoiar direito para resolver essa situação; e não queria que o mesmo acontecesse com ela.

Meu marido também ficou indignado e chocado com o que nossa filha contou, coisa que não costuma acontecer muito, pois ele sempre é o que consegue manter mais a calma. Perguntamos se ela se sentia confortável que fôssemos à escola dela logo no dia seguinte para falar sobre essas coisas e vi um brilho de esperança nos olhos dela, algo que eu sabia ser como “Finalmente” e um agradecimento silencioso.

Nosso filho, que em um determinado momento do relato, tinha ido sentar-se no colo da irmã, pegou as mãos dela e começou a acariciar. Estávamos todos muito perto uns dos outros e senti que aquilo era mais do que certo, aquilo era o que realmente deveria acontecer sempre em todos os outros lugares...

Uma família _realmente_ unida!

No dia seguinte, fomos eu e meu marido deixar as crianças na escola e entramos com eles pela portaria. Nos abraçamos para que eles pudessem seguir para suas respectivas salas de aula e rumamos em direção à sala da coordenadora.

- Olá, tudo bem? – A coordenadora nos recebeu e pediu que sua auxiliar fechasse a porta, o que sabíamos ser um indicativo de que ela estava em reunião.

Contamos tudo o que nossa filha havia nos dito no dia anterior e a coordenadora escutou com toda paciência, embora muitas vezes eu percebesse que ela quisesse falar algo. Perguntou se ela tinha falado algum nome dos colegas que faziam isso e nós, prontamente falamos todos os nomes que ela nos deu.

- Pronto, pais, é porque assim... Essas crianças que vocês me disseram têm uma vida difícil em casa. Uma a mãe não vem nem buscar o boletim, o outro o pai até está preso, então relevem...

- Com licença, professora – eu falei, não querendo ouvir aquela

mesma história de tantos anos atrás. – Eu posso até acabar sendo meio rude nessa minha próxima fala, mas eu não quero saber da vida de seu ninguém. Não vou chegar pra minha filha e dizer “Oh, meu amor, releve, pois seus coleguinhas têm uma vida difícil e não tão boa quanto a sua”, se a _minha filha_ está sofrendo. Eu quero o melhor pra ela, e não vou ficar parada vendo que ela não gosta do que fazem com ela, mas tem... Ela tem a obrigação de aturar isso porque os colegas perderam a noção de certo e errado por terem uma vida difícil? Eu e meu marido passamos por perrengues enormes quando éramos mais jovens e nem por isso descontávamos nas outras pessoas e nem pegamos caminhos tortos em nossas vidas. Eu queria dizer que sinto muito em não acatar o que a senhora está me dizendo, mas se trata da vida social e escolar da minha filha, então me recuso a dizer pra ela que ela vai ter que continuar aturando isso porque esses colegas vão ter uma crise não sei de quê se forem chamados à atenção!

Ignorei a expressão de choque da coordenadora e ela pareceu olhar para meu marido em busca de apoio, porque mulheres são sempre histéricas, não é mesmo? Se ser histérica é defender meus filhos com tudo que tenho, então sou sim!

- Professora, minha mulher pode ter se exaltado um pouco, mas eu não tiro a razão dela em nenhuma vírgula, pois quando se trata do bem estar dos nossos filhos, em qualquer ambiente que seja, nós não costumamos medir esforços para que eles tenham do bom e do melhor, já que nós não tivemos isso. Minha esposa passou pela mesma situação quando era criança e falar desse assunto é muito duro para ela, até porque os pais dela lhe disseram exatamente a mesma coisa que a senhora está querendo que digamos para a nossa filha e nós não achamos que isso seja o certo. Se os pais desses colegas dela não ligam para seus filhos e não conseguem lhes ensinar que bater, xingar ou ser mal com os outros na escola é errado... Bom, então temos uma questão muito séria de inversão de valores e virtudes aqui.

A coordenadora chamou a psicóloga do colégio para que ela conversasse conosco também. Como nossa filha também tinha dito, também havia procurado a psicóloga do colégio por ver nela alguém lá de dentro que já poderia começar a dar um basta nessa situação.

- Mas há sigilo médico-paciente, eu não posso falar muita coisa sobre o que conversamos...

- Ela nos contou tudo ontem à noite – falei para ela, e vi que ela pareceu relaxar os ombros e trocamos um olhar de certa cumplicidade, pois, pelo que ela disse, realmente gostava da nossa filha e também queria vê-la bem.

- Ela me disse que não queria demonstrar nada do que acontece aqui, em casa, para não preocupar vocês. Ela é realmente uma menina muito forte e faz tudo pela família. Fico muito feliz em ver que a família faz o mesmo por ela.

A coordenadora pediu que sua auxiliar fosse buscar os colegas da turma para sua sala (eram apenas dois ou três) para que ela conversasse com eles. Lógico que saímos da sala e fomos à cantina tomar um café. Quando estávamos voltando, vimos que nossa filha agora estava sentada fora da sala também. Ela já tinha sido chamada dentro da sala para falar para a coordenadora, na presença dos colegas, o que vinha acontecendo, como ela nos disse depois.

- Oi, meu amor – meu marido a abraçou e foi uma das primeiras vezes, em muito tempo, que a vi sorrir novamente daquele jeito que todo o rosto dela se ilumina.

- Obrigada, papai. Mamãe, muito obrigada! Eu não sabia mais o que fazer e vocês vieram me ajudar. Eu amo vocês.

- Nós também te amamos, minha princesa.

Depois de uns cinco minutos, a porta da sala se abriu e vimos os colegas da nossa filha saírem. Um deles olhou pra mim, riu com desdém e depois ainda disse:

- É tão bobona que sempre pede ajuda aos papaizinhos pra resolver as coisas pra ela...

- Isso porque ela sabe que pode contar com a gente, querido – eu falei, ao passo que o garoto murchou e voltou a falar, mas agora com certo desespero na voz.

- Meu pai conhece quem pode dar uma lição em vocês por terem me feito vir até a coordenação e levar suspensão por causa de besteira.

- Ah é? – Foi a vez do meu marido. - E eu conheço quem consegue essas pessoas para o seu pai, então é melhor não mexer de novo com minha filha nem com ninguém da minha família, entendeu?

O garoto assumiu uma expressão de genuíno medo naquele momento e, mesmo que (pelo que percebemos) a coordenadora tenha desaprovado esse diálogo, tenho certeza de que ela reconheceu que estávamos fazendo o que ela deveria ter feito, a postura que ela deveria ter assumido (mesmo que um tanto exagerada, mas isso não vem ao caso!).

Nossa filha voltou a sorrir em casa, estava agora feliz por ir à escola e isso não ter mais que ser um tormento.

- Bom, ainda tem as aulas pra torturar a gente – ela disse, ao passo que seu irmão riu e completou:

- Sim, matemática é uma coisa horrível – e todos terminamos aquela noite rindo de quase se engasgar com a comida e assistimos um filme de animação sobre um menino de cabelo louro e espetado que viaja no tempo.

Paulia B. Sousa

Paulia Barreto
Enviado por Paulia Barreto em 23/08/2020
Reeditado em 21/10/2020
Código do texto: T7044134
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