DOIS MESES DEPOIS

DOIS MESES DEPOIS

crónica de uma saga quase autobiográfica

Nem nos seus piores sonhos, ele imaginou que lhe pudesse acontecer.Mas aconteceu.

A imagem assemelhava-se a deslizar sem travões num lago gelado imenso e infindável sem margens nem tundra nem nada.

Na realidade tudo se passara em segundos breves mas mortíferos.Ir e vir no corredor, entrar no escritório, sentir-se atingido por algo violento como uma bala perdida, cair, arrastar-se pelo chão, pedir socorro:

- Amália, não assuste a minha mulher mas ligue para a emergência médica.Deu-me qualquer coisa grave…

A senhora correu para o telefone, a Mafalda acudiu lívida.Os paramédicos entraram,mediram-no picaram-no, levaram-no numa cadeira de rodas e puseram-no na ambulância.

E ele pensou:

“ Não somos nada.Só peço, meu Deus que não me deixes entalado entre a Vida e a Morte”.

E ele sentiu-se a atravessar a cidade com uma sirene a apitar por cima da cabeça e depois felizmente foi tudo fugaz como um filme antigo em movimento rápido ou um disco desenfreado em setenta e oito rotações.

Hospital…triagem…via verde…médicos…tc crânio…a confirmação:um AVC…hemorragia…sangue…perigo…diagnóstico reservado…

Internamento…vale de criaturas doentes vigiados por uma equipa de profissionais sem emoção nem pena…um quarto exíguo partilhado com outros e uma estação de pc onde os profissionais registavam relatórios e consultavam o facebook.

- Que dia é hoje?...Onde é que estamos?Siga com os olhos o movimento do meu dedo.

Enfermeiras novas de casaco de malha azul escuro, assistentes e cuidadores que trabalhavam demais com falta de pessoal e talvez ganhassem de menos e que eram tentados a abusar da vulnerabilidade do mais fraco,o doente sem forças.

Arrastadeira…termómetro, teste para o Covid 19, invasão, dores, humor em chamas.

Não conseguia comer as dietas pastosas e as noites tornavam-se um pesadelo com a insónia sem tréguas.

-Vai ser transferido para os Capuchos.

Uma enfermaria que lhe lembrou a de Atlanta a céu aberto em “E tudo o vento levou” quando a Scarlett O’ Hara vai tentar chamar o Dr Meade por causa do parto iminente da Melanie Hamilton.Há homenzinhos deitados ao longo de um corredor gigante e até há cidadãos estrangeiros também enfermos.

O mais difícil é conseguir ir á casa de banho.Não tem autorização para andar sozinho, tem que o levar, é um castigo.Ameaçam-no acorrentá-lo em caso de desobediência.

Hans, o alemão dispõe-se a ampará-lo e acompanhá-o até lá.

No regresso.

- Obrigado.Danke.Não tenho como retribuir.

-Um Abraço.Sinto falta. Um pouco de calor…

Perdido por cem, perdido por mil.Ele abraçou o outro mas estava tão fraco que quase desfaleceu.Voltaram com ele aos ss.Um homenzinho desprezível denunciou-os e o enfermeiro materializou-se á cabeceira.

- Onde é que foi?

- Em sonhos?

-Não se faça engraçado!

Nova mudança.Para uma unidade com quartos de duas pessoas.Foi colocado com o Sr António, um homem gordo e choroso que se queixava que tinha ficado pior do que ele.

Decidiu pôr fim aquele suplício.Desgraçado Sistema Nacional.Saúde Pública de rastos mas orgulhosa.

-Quero ir para casa.Por favor, chame a médica.

A Médica apareceu aos pulinhos , toda contente sempre que se tratava de dar alta a

alguém.

- Eu trato de tudo.Não se preocupe com nada.Telefono á sua mulher para o vir buscar, prescrevo a medicação necessária e emito a nota de alta.- e foi-se embora a saracotear-se, radiante.Menos um.Golo!

A Mafalda está em viagem, regressa de Marvão na fronteira com Espanha onde foi requerer um novo cartão de cidadão depois de lhe terem roubado todos os documentos numa loja perto de casa.Em Lisboa, só havia vaga com marcação daí a meses.

Entra afogueada e vaporosa,linda e perfumada para o vir buscar e ele comoveu-se por vê-la, por amá-la tanto naquele deserto de almas.Voltar a casa foi como regressar ao paraíso , depois de um estágio no inferno.

Mas foi igualmente o grande momento em que se defrontou com a certeza que já nada seria igual a antes e que urgia reaprender os passos,empreender a aprendizagem necessária para continuar, sobreviver.

Ninfetas e amazonas entraram pela casa e pela algibeira para as sessões de fisio.

Levantar o cóccix, caminhar na passadeira, levantar a perna, pôr-se de gatas, subir um lance, descer sem mãos…

- Está cansado? – pergunta a Ana, trinta e cinco anos, alta, torneada e grávida, com uns pés enormes e joanetes do alpinismo.

-Eu e o meu marido que também é fisioterapeuta adoramos fazer escaladas.- diz ela com uma vozinha de desenhos animados.

“Será que eles conceberam a criança no pico de uma serra qualquer?”

Com a Vânia, terapia da fala.Vocalizações.Ela traz um arsenal artesanal de objectos para os exercícios: pinças, rolhas e palhinhas dentro de uma caixinha de surpresas

-Abra a boca.Faça pressão nas bochechas, respire e repita:O rato roeu a rolha…

Ele sentia-se voltar perfidamente às aulas de voz nos cursos de teatro.

Fraldas á noite nos primeiros dias por causa da eventual incontinência, comprimidos ao almoço e ao jantar, a primeira experiência com o Prozac por causa da depressão, medir a tensão arterial três vezes por dia.A perda de peso tornou-se dramática.

E aos poucos, a um ritmo exasperante ir testando, vendo se era capaz de…ir á rua sozinho , descer uma escadaria sem ajuda,guiar, executar um cálculo…

- Falta-te só saber se és capaz de copular.Não tens que aborrecer a Mafalda.Levo-te às meninas como quando eramos adolescentes ou bato-te uma enquanto vês a Bo Derek toda descascada num vídeo do “10”.Os amigos são para as ocasiões - gracejou o Pedro, amigo de longa data.

“E voltar a escrever, serei capaz?Notar-se-á alguma coisa?Perda de faculdades…sei lá?”

No lago gelado avistou um vulto igual a si mas muito mais magro vir ao seu encontro.Pararam frente a frente, hirtos e sisudos.

- Chegou a hora.De dizer adeus.Sem olhar para trás.Sem mágoa.Corajosamente.

- Como um rito de passagem?

- Quase.Deves partir já, sem demora.Para viveres o último capítulo.Eu já era.

Deram-se as mãos.Fitaram-se.Viraram as costas.Enquanto um retrocedia para a Morte, o Nada, um tecido feito de recordações, o novo eu emagrecido e pálido mas rejuvenescido, partia rumo ao desconhecido mas onde Mafalda, Pedro e Carmo,outra querida amiga lhe acenavam ao longe incitando-o a juntar-se a eles, na outra margem.

E ele saiu daquele cenário e dirigiu-se á mesa de trabalho.Sentou-se.Suspirou.Era perceptível um formigueiro no dedo anelar da mão esquerda e uma tremura irritante na mão direita.Abriu o Word.Respirou fundo e digitou como que a engolir uma realidade ou fatalidade inevitável.

“Nem nos seus piores sonhos, ele imaginou que lhe pudesse acontecer.Mas aconteceu”.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 19/08/2020
Código do texto: T7040190
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