Dos relógios

O som do despertador invade-me os ouvidos numa aurora que eu não queria presenciar. O corpo inteiro rejeita levantar-se, tudo está pesado, como em qualquer dia, a cama está amigavelmente muito confortável para dispensá-la sem longo adeus. “Tenho logo que sair, vou me atrasar, amigos não me dão sustento.” Dou alguns socos no travesseiro em relutância e me jogo para fora da cama. Vou àquela ducha gelada, minha tortura pessoal para acordar, passo a toalha no corpo com ódio preguiçoso. De tanta pressa, não faço desjejum, me jogo no caminho para trabalhar.

Já são quase oito e a condução ainda não chegou, olho para os lados, nada; para o céu, nublado. Sensação esquisita começa a se apossar de mim, eu já devia estar na porta do serviço. “Vão me demitir, ficarei na rua a pedir esmolas”. A ansiedade faz com que as pernas comecem a caminhar, mesmo que eu more muito longe para ir a pé, não consigo pará-las, as paranoias pegaram as rédeas de jeito e sou apenas passageiro nesse frenesi mental.

Meio caminho se passa. A cabeça continua a dar ordens que as pernas já não conseguem corresponder. Paro em lugar desconhecido derretendo em suor. As roupas já molhadas como em garoa de verão, daquelas que grudam a roupa à pele em algumas partes, causam incomodo. “Porcaria!” Olho para o meu pulso e o relógio não está lá.“Merda de relógio do camelô! Eu que não vou voltar tudo isso”. Contudo me encontro cansado também para continuar. “Que horas são? Nu dos pulsos como vou saber?”; “Estou fudido e mal pago”.

“Desisto!” entro em um estabelecimento a minha esquerda, é um bar. Apenas o balconista se encontra, as cadeiras nem estavam postas, o ambiente repreende simplesmente por você estar lá a essas horas. As bebidas reluzem nas prateleiras do fundo, como um ar de felicidade madura, contrastando com os doces do balcão que me lembram da infância de quando meu pai me levava em suas bebedeiras e eu me dopava de suspiros e doces de leite.

Bons eram esses tempos, talvez não os tenha apreciado o bastante. Tanta felicidade, tanta euforia. Meu pai e seus amigos riam, dançavam, cantavam as sofrências mais doídas para esses corações comuns, festas que não tinham seus inícios marcados, nem tinham pressa para acabar. Não consigo segurar e lagrimas me correm nos olhos. Me viro para que o balconista não estranhe a minha tristeza, não sei como ele vai entendê-la. Enxugo os olhos e sento no banquinho perto do balcão, o senhor se aproxima e pergunta o que desejo. Demoro mais do que ele está acostumado, não tinha pretensões de estar naquele banco, peço um copo d’agua, justifico com o suor que ele com certeza tinha percebido pelos olhos julgadores que me vigiava.

Começamos a conversar sem rumo, não me preocupei em memorizar as informações das histórias que me contava, apenas reagia quase de forma automática. Contei alguns causos também, mas sem chegar naquela infância nostálgica. Aquela era só para mim, estava como um fantasma na parte de trás da cabeça com o qual também conversava.

Ao contrário do senhor do balcão, o fantasma tinha me colocado em uma mesa de delegacia. Ele era o policial mal, o bonzinho tinha faltado, provavelmente estava doente. Me julgava com perguntas das quais eu não tinha respostas: “Como acabei assim? Qual era meu proposito em manchar aquele lugar com memórias ruins? Por que assassinou a criança nessa carcaça? Onde ela está?”. O passado não é amigável como eu pensava. Eu ficava lá tentando me explicar, suando de nervoso, o que nem sabia que era possível naquelas condições.

Pressão foi tanta que as pernas começaram a correr de novo, o velho ficou sem entender e não sou eu que vou voltar lá explicar. Novamente o GPS natural toma conta, só que sem destino. As horas não me julgam mais, não sinto mais o membro fantasma no pulso. Nem passado, nem presente parecem querer me acolher.