O PROFESSOR DE FILOSOFIA MODERNA

Íamos pelo segundo ano do bacharelado em filosofia. Era um curso noturno, numa grande universidade privada de São Paulo. Turma muito heterogênea em vários sentidos e, especialmente, em relação à faixa etária, que ia dos dezoito aos sessenta anos.

Os professores, todos doutores (alguns renomados em suas especialidades), durante o dia trabalhavam na USP, na PUC ou em outras universidades. Depois de dois meses de aulas, nosso professor de filosofia moderna desligou-se do curso. Saía para assumir vaga conquistada por concurso numa universidade federal. Ficou aquela expectativa em relação a quem o substituiria. Estávamos acostumados com seu estilo, seus métodos e temíamos a vinda de um desconhecido, que poderia dificultar ainda mais a nossa vida, numa matéria já bastante difícil.

Os boatos (sempre os há) eram de que o novo professor era um sujeito muito austero e de discurso complexo, quase incompreensível. Mas não houve muito espaço para a boataria. Em coisa de três ou quatro dias, eis que se apresenta o novo mestre. Alto, aparentando cinquenta e poucos anos, cabelos longos, despenteados e já um pouco ralos, chegou fazendo brincadeira com a classe.

- Quem é o melhor da turma?

Todos riram, deram de ombros e, claro, ninguém respondeu. Então ele olhou para o japoroca, sentado ali perto da janela, apontou-lhe o dedo e disse:

- É você, né? Imagine os outros...

(O japoroca, hoje, é pós-doutor, trabalha na PUC, com história da ciência, e dirige publicação internacional de divulgação científica. Seu currículo já supera o do mestre retratado neste conto).

Nosso novo professor nasceu no Uruguai e, na adolescência, foi morar e estudar na Alemanha, onde fez da graduação ao pós-doutorado em filosofia. Suas aulas eram inteiramente orais, num dialeto que misturava alemão, espanhol e português. Não escrevia uma palavra no quadro negro, não recomendava bibliografia de pensadores ou comentadores e dizia não existir filosofia escrita em português. Enquanto falava, seus olhos giravam, ora no sentido horário, ora no anti-horário, como se isso o ajudasse na formulação dos raciocínios.

Ninguém duvidava de sua sabedoria e competência, mas os dias e semanas se sucediam e quase a totalidade da turma estava na estaca zero em ralação à matéria. Um ou outro, mais arrojado, ia estabelecendo algum nexo entre o discurso do mestre e alguma obra relacionada com os autores trabalhados, sendo Immanuel Kant o ponto de referência. Ao aproximar-se a data da avaliação semestral, decidi que não faria a prova. Esperaria para ver como se sairiam os colegas que a fizessem (já que outros haviam tomado a mesma decisão que eu) e me inscreveria para a prova substitutiva. Tentava vislumbrar algum farol em meio à densa neblina de ignorância que me envolvia.

Transcorrida uma semana desde a prova, as notas foram afixadas num mural, na parede da nossa sala. Metade dos alunos obtiveram nota seis, mínima para aprovação; dez por cento da turma, notas entre sete e sete e meio. E um oito! - nota do japoroca. Os outros quarenta por cento foram reprovados ou não fizeram a prova. Em conversa com o japoroca e com outro colega, que tinha nome de historiador famoso, supus ter encontrado um meio de não ser reprovado na matéria. A partir da questão dissertativa formulada para a prova, pesquisaria o assunto e tentaria reunir elementos que me permitissem discorrer minimamente sobre o tema, na prova substitutiva. Os colegas, porém, advertiram-me de que o professor poderia mudar os autores e o eixo temático. Decidi apostar tudo na hipótese de que o mestre repetiria o tema e os autores. Deu certo: obtive nota sete.

No decorrer do segundo semestre, certo dia chamaram o professor para uma reunião urgente na vice-reitoria. Ele deixou a classe aos cuidados do aluno representante e foi para a reunião, cuja duração era incerta. Sobre a sua mesa, um velho calhamaço, de capa ensebada, que ele sempre trazia para as aulas e, às vezes, abria e fechava rapidamente, enquanto falava. Um dos alunos teve a ideia de que devíamos aproveitar e tirar xerox do máximo que de páginas daquele livro. Um aluno iria para a copiadora, um andar abaixo do nosso; outro se postaria perto da porta da vice-reitoria, no térreo. Ao primeiro sinal de encerramento da reunião, ele correria até a copiadora e avisaria o colega para que trouxesse o livro de volta para a sala.

Não demorou dez minutos e o cara que estava na copiadora voltou com o livro . E nós:

- Já?!

- Alguém aí sabe alemão? Essa joça está toda em alemão! - disse ele.

Todos se olharam, com caras de desamparo. Levantei-me, fui até o quadro, tomei giz de diferentes cores, desenhei no centro da lousa uma grande suástica e escrevi, em letras garrafais: Heil... !!!

Nossa sala era em L. A entrada era numa perna do L e a lousa na outra. Quando voltou da reunião, o professor chegou assoviando, feliz. Mas, quando olhou para a lousa, todos perceberam o impacto que a inscrição provocou nele. O cara ficou branco, visivelmente desconcertado. Pôs as mãos na cabeça, olhou demoradamente para cada um de nós, sentou-se, respirou fundo e disse:

- Tá bom, gente! Já que vocês insistem, anotem aí os livros que terão de ler para este semestre. Mas não se iludam: não existe filosofia escrita em português!

José Luiz Barbosa de Oliveira
Enviado por José Luiz Barbosa de Oliveira em 08/08/2020
Reeditado em 09/08/2020
Código do texto: T7030120
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.