Um menino, quatro pais e dois morangos

Todos sofremos da mesma carência: tempo. E na sombra deste mundo dos sem tempo, está um menino entediado, que chegou a uma fase impensável de aborrecimento: cansou-se do celular.

Seis anos. Uma idade de sobrecarga de energia. Seis anos e um agravante: filho único. Para evitar um curto circuito, precisava liberar energia. E era tanta que o celular não deu conta. Queria os pais. Mas, e o tempo? Ah, o tempo.

O tempo espreme o dia em 24 horas. Os 1.440 minutos e os 86.400 segundos ficam todos apertadinhos nessa caixinha, que começa no Sol e termina na Lua. Então, definitivamente, não dá, não cabe mais nada.

O menino, ignorando todos esses números que inventamos para retalhar o tempo, olha para o pai, e reivindica o que imagina ser seu direito:

- Brinca um pouco comigo?

O pai resmunga algumas desculpas surradas:

- Filho, se eu tivesse mais tempo, é claro que brincaria com você, daria mais atenção a você. Como gostaria disso, mas estou tão esgotado. Sabe que o papai tem que trabalhar para pagar as contas, pagar o carro, a casa, comprar comida, comprar o que você precisa, roupas, brinquedos...

O garoto olha os brinquedos... Com passos desanimados, pega um carrinho, peças de lego, um cavalinho... E, por fim, solta, como balão furado, um ar de tédio.

Tenta a mãe.

- Filho, tô exausta! E sabe que horas são? Olha, você vai comer e ir pra cama. Se quiser, pode ficar mais um tempo no celular. Mas só um pouquinho.

O menino pega o celular, entra em um joguinho, em outro, em outro... Novo ar de balão furado.

- Filho, se eu fosse dois, aí teria todo o tempo do mundo pra você - boceja o pai palavras sonolentas.

A mãe reforça:

- Pleno acordo.

E não é que um brilho maluco cintilou naquela cabecinha? O garoto se lembrou que tem uma lâmpada mágica. É de brinquedo, é verdade. Mas, vai que funciona...

O menino procura o brinquedo, que, até então, não lhe despertara nenhum interesse. "Achei" - vibra. Esfrega as mãozinhas crédulas na lâmpada e, para sua surpresa, aparece, envolto numa fumaça cinza, um homem careca, azul, de barbicha e brincos. Todo estiloso.

- Você me libertou. Tem direito a três pedidos.

Sem titubear, a criança responde:

- Quero dois pais.

- Isso você já tem.

- Quero mais dois.

- Outros pais?

- Não. Os mesmos.

- Tipo clone?

- O que é clone?

- Deixa pra lá. Você quer outro pai e outra mãe iguaizinhos aos que você tem?

- Isso!

O gênio fica na dúvida se isso seria um ou dois pedidos. Decide seguir a máxima de que o cliente sempre tem razão e considera o pedido como sendo apenas um.

- E os seus outros dois pedidos?

- Mas você ainda não atendeu o primeiro.

- De boa. Atendo tudo de uma vez. Então, qual é o seu segundo pedido?

- Um morango.

- Quê?! Você vai desperdiçar seu pedido com morango?

- Ué, eu gosto de morango.

- Tá bem. E o terceiro?

- Não sei... Posso fazer depois?

- Por mim, sem problema... Vou voltar pra lâmpada e amanhã você me acorda pra fazer o terceiro pedido.

- Ei, gênio, espera. E os meus pedidos?

- Ah, sim. Amanhã de manhã, chegam suas encomendas.

O menino não gostou muito, mas, sem opção, resolveu esperar. Quase não conseguiu dormir, tamanha era a ansiedade.

No dia seguinte, sua mãe o acorda, enquanto sua mãe prepara o café na cozinha. Também escuta dois homens conversando, os dois com a mesma voz, a do seu pai.

- Eba! Deu certo! - grita.

Em sua cama, havia um embrulho. Ele o abre e vê um morango. Feliz, vai ao banheiro cantando. Escova os dentes, lava o rosto. O espelho fica pequeno para tanta alegria. “Agora, tenho um pai e uma mãe pra brincar comigo” – festeja o menino.

Os pais também estão contentes. Muitíssimo.

- Sou a pessoa mais sortuda do mundo – comemora a mãe com a mãe.

Enquanto isso, o pai conversa com o pai algo que parecia ser muito sério.

- Como agora somos dois, podemos colocar o trabalho do escritório em dia.

- É verdade. Ou talvez eu aceite aquele emprego que ofereceram a você na semana passada. O que você acha?

- É uma boa. Posso ir para o outro emprego sem sair deste.

A mãe já planeja retomar o projeto do mestrado, adiado há dois anos.

- Legal. Vou hoje mesmo procurar uma universidade que tenha essa linha de pesquisa que nós queremos.

- Isso é maravilhoso. Não acredito que sou duas. Vou poder estudar sem deixar de trabalhar. Melhor: vou estudar e trabalhar, com tempo para as duas coisas.

O garoto tem agora quatro pais, com o dobro de tempo e nenhum para ele. Percebe, na ingenuidade de criança, que o tempo não tem nada a ver com quantidade, mas, sim, com prioridade. Volta para a sombra do mundo dos sem tempo e mastiga, sem vontade, o morango.

Lembra-se, então, do terceiro pedido. Corre, eufórico, até o quarto e esfrega a lâmpada.

- Ah, você voltou. E, então, o que vai ser desta vez? - pergunta, solícito, o gênio.

O garoto até pensa em aumentar o estoque de pais, mas, de última hora, resolve pedir algo que não lhe decepcionará:

- Quero outro morango.

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 04/08/2020
Reeditado em 04/08/2020
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