A Morte Feliz (inspiração, muito modesta, no livro homônimo de Albert Camus)
Pedro abriu os olhos, olhou para o crucifixo no criado mudo e pensou em voz alta:
- Será que eu morrerei hoje, hein?
Ele fazia ironicamente essa pergunta a si mesmo todos os dias, assim que acordava. Na realidade, esperava que Deus se metesse em sua vida e desse uma resposta. A pergunta nada mais era do que um subterfúgio para vencer o Criador pelo cansaço.
Mesmo assim, não deixava de ser uma mistura de angústia com provocação a Deus e era um sentimento que o atormentava há muito tempo.
E não era apenas uma dúvida existencial. Existia um sentido: Ele fazia essa provocação porque culpava Deus por ter levado tão cedo a sua mãe e ainda ter assistido todo o sofrimento do pai até o fim dos seus dias. Este não superou a perda da esposa querida, enveredando para o alcoolismo até minguar e morrer bêbado, em casa, sozinho.
Ele pensava:
"Porque me casar e ter família se hoje ou amanhã eu poderei não estar vivo? Eu sei o que meu pai passou com a morte de minha mãe. Melhor seria que eles nunca tivessem se conhecido. Eu também não teria nascido e não seria mais um condenado a viver com esta dúvida angustiante. Não vou ter família. Esquece, não vou te dar esse prazer de me fazer sofrer também. Já chega meu pai."
Levantou da cama, fez a sua higiene pessoal e foi se arrumar para ir ao trabalho.
Ele nunca levou um namoro adiante por muito tempo. Quando sentia que estava se apaixonando e que era correspondido, começava a se distanciar da garota, até que a relação terminava.
"Deus não é justo. Deixa as pessoas se apaixonarem até o ponto de brotar o amor verdadeiro e depois tira a vida de um dos dois. Para que? Para o sofrimento chegar e permanecer nas nossas vidas e depois sentir uma saudade que nunca passa porque o outro já não existe mais? Isso é sadismo. Não posso me livrar da morte, mas não quero saber de amar nenhuma mulher".
Essa atitude mental paralisava a sua vida.
Mas um dia ele conheceu Ana.
Ana foi admitida na empresa em que ele trabalhava e desde o início em que foram apresentados um ao outro, houve um interesse mútuo entre os dois. Uma paixão recíproca.
No ambiente de trabalho, eles se viam todos os dias e com o passar do tempo, os simples cumprimentos educados matinais e de despedidas já não eram mais suficientes.
A vontade de se conhecerem melhor foi aumentando até que Ana tomou a iniciativa de puxar conversa com ele no intervalo do almoço.
Daí em diante, uma infinidade de oportunidades foram aparecendo para que ficassem juntos.
E aconteceu.
Se apaixonaram pra valer. Veio o primeiro beijo. O primeiro barzinho. A primeira dança. O primeiro abraço apaixonado. A primeira noite de amor.
Foi a primeira vez que Pedro não resistiu e se entregou aos braços de uma mulher, de corpo e alma. Estava amando Ana.
Até esqueceu de se fazer a pergunta diária que o angustiava a tantos anos.
"Quero me casar com Ana e ter uma família. Pouco me importa se vou morrer hoje ou amanhã ou se isso vai acontecer com ela. Eu mereço ser feliz. Até para compensar o sofrimento por meus pais. Deus, não sejas tão cruel comigo agora. Você me deve. Conseguiste me vencer pelo cansaço. Fui derrotado por tua persistência e pelo coração. Deixa-me viver, por favor."
Eles se casaram. Logo vieram os filhos e por muitos anos viveram felizes.
Até que um dia acordou pensando em voz alta:
"Não quero morrer. Não quero deixar Ana e meus filhos sofrerem por minha causa. Não. Não quero morrer."
- O que está acontecendo Pedro? Que conversa é essa de que não quer morrer? Por um acaso estás muito doente e não me disseste?
Perguntou Ana preocupada.
- Não meu amor. É besteira da minha cabeça. Foi apenas um sonho ruim que tive esta noite. Fique tranquila. Não é nada.
Respondeu Pedro para tranquilizar a esposa.
Mas daí em diante ele não conseguia mais ter paz. Essa angústia tomou conta dele ao ponto de o paralisar mais uma vez. Ele não se livrava ou não queria que essa angústia o deixasse.
E com o tempo, isso interferiu no trabalho e na sua vida pessoal. Perdeu o ânimo pela vida. A esposa, a família e os amigos, preocupados com ele, tudo fizeram para que ele se recuperasse.
E todos foram se cansando porque não viam resultado.
Primeiro os amigos foram se afastando. Perdeu o emprego. Foi ficando cada vez mais isolado. Adoeceu e não queria mais sair da cama. Os médicos e os medicamentos não mais faziam efeito.
A esposa não conseguia entender o que estava se passando com o homem maravilhoso que um dia conheceu. Não tinham mais conversas. Nem carinho. O sexo não mais acontecia. Acabou o desejo e o amor.
Por fim, Ana o deixou. Se separou e levou os filhos juntos.
Tudo levava a crer que ele não se restabeleceria da sua apatia.
Um dia, ele adormeceu e não acordou mais nesta existência.
Ana foi avisada e providenciou o sepultamento dele.
Ela não se conformava em não entender o porquê de Pedro ter desistido de viver. Não podia ser só uma doença. E tomou coragem e foi ao apartamento dele para recolher as suas coisas.
Chegando lá, encontrou o crucifixo dele ao lado da cama, no criado mudo. Embaixo tinha um papel escrito. Ela pegou e viu que era uma carta. Reconheceu a letra de Pedro e leu.
"Ana, não fique triste por mim. Passei a minha vida inteira angustiado com a iminência da morte. Vivi atormentado por essa certeza que ninguém escapa de um dia morrer. Isso me paralisou e me trouxe muito sofrimento, porque convivi com o fantasma que perseguiu o meu pai quando minha mãe faleceu. Foi muito doloroso tudo isso. Mas quando te conheci, essa fatalidade não parecia ter mais sentido, porque descobri o amor em ti. Queria viver. E muito, porque finalmente, tinha encontrado um sentido para a vida: O teu amor."
Ela começou a chorar forte.
"Eu estava feliz. Mas era pura ilusão. Essa felicidade não durou ou nunca existiu. Voltou a minha angústia? Não, ela nunca me abandonou. Eu não queria que ela fosse embora."
Ela levou a mão ao queixo e com surpresa, fixou a atenção ao que veio depois.
"Hoje eu senti que meu último dia está chegando. Mas, inesperadamente, não estou triste, angustiado ou com medo de morrer. Eu estou neste momento, sentindo a maior felicidade que nunca tive em toda a minha existência. Sabe porque? Porque compreendi que cheguei no ápice do meu sofrimento e não dói e nem me perturba mais. Pelo contrário: estou muito bem. Na verdade meu amor, pessoas como eu se acostumam a viver assim. É como uma pele que encobre o nosso corpo e nos protege do frio. Se já nascemos condenados ou no decorrer da existência nos condenamos a viver assim, nunca vou saber com certeza. Mas posso afirmar que para mim não foi possível me despir dessa pele."
Ana não consegue reter as lágrimas. Enxuga os olhos e continua a leitura.
"E repito meu amor, não fique triste por mim, te peço essa derradeira vez. E te digo com toda alegria: Eu fui feliz a minha vida inteira com o meu sofrimento."
E encerrou a vida de Pedro.
Ariano Suassuna disse em suas entrevistas, que não criou seus personagens para suas obras. Eles já nascem prontos. São as pessoas comuns que têm algo de extraordinário para contar para o mundo. Aliás, todos nós temos porque somos personagens da vida.
Os personagens Pedro e Ana existiram. Estavam alí, na minha vizinhança, pedindo para alguém contar a sua história.