O NEGRO CASSIANO
Conheci Cassiano, um negro de alma branca, quando eu tinha cinco anos de idade. Ele possuía um sitiozinho que fazia divisa com o sítio de meu pai e, ao que me lembro, eu o vi pela primeira vez numa tarde em que chegou até o terreiro de minha casa e bateu palmas. Minha mãe, que estava fazendo janta, saiu da cozinha e foi até à porta da sala. Eu corri à frente dela e abri a porta e recuei ao ver um homem preto sorrir e mostrando aqueles dentes brancos, como o leite que eu bebia todo dia de manhã.
- Boa tarde senhora Antonica!
Antonica era o apelido de família pelo qual minha mãe, que se chamava Antonia, era conhecida.
- Vim trazer uma notícia triste.
Assim disse Cassiano e, tirando um lenço amarelado do bolso, enxugou as lágrimas que escorriam de seus olhos. Depois arregalou os olhos e pude ver uma esfera preta entre dois triângulos brancos. Claro que eu nada sabia de esferas e triângulos, o que só estudei muito mais tarde e, confesso, apaixonei-me pela trigonometria. Naquele momento, porém, o que me chamou atenção foram os dentes alvos e as partes brancas dos olhos pretos do negro Cassiano.
- Não se assuste, dona Antonica. É que o Zé Dito morreu hoje depois do meio dia.
Zé dito, muito mais tarde fiquei sabendo, era um bom violeiro e cantador, solteirão namorador, pelo qual as moçoilas casadouras se descabelavam de paixão. De tanto beber, acabou morrendo de cirrose.
- Pois é, dona Antonica, o Zé Dito não aguentou. Foi até internado na Santa Casa e depois de uma “mióra ele vortô pra casa”. Ele até saiu umas noites nas estradas fazendo serenatas e cantando e ponteando a viola, como era costume dele. Só que arruinou e hoje nem conseguiu levantar. A dona Júlia, mãe dele, fez um chá de cidreira misturada com folhas de laranjeira, mas não adiantou nada. Eu vim avisar da morte, do velório nesta noite e do enterro amanhã.
Então, a história do Zé Dito para mim é quase só isso. Nada mais sei deste seresteiro do sertão, de cuja morte o negro Cassiano veio nos dar notícia.
Minha mãe o escutou, trocou com ele algumas palavras de praxe, das quais nem me lembro mais. Recordo, porém, do velório chorado pela mãe, pelo pai, pelos irmãos e irmãs e, sobretudo, por muitas caboclinhas apaixonadas pelo defunto.
Recordo-me que na noite do velório houve coisas inusitadas. Tudo normal num velório num casarão à beira de uma estradinha de terra e, mais abaixo, um córrego, seguindo para desaguar num riacho, mais além num ribeirão, e, por fim num rio e outros afluentes , acompanhando águas e mais águas, até essas inúmeras águas desaguarem-se no mar, o rei das águas.
Depois de uns dois ou terços rezados pela alma do falecido, correu uma rodada de pinga para defumar o defunto. Lembro-me, que meu pai tomou um golinho e me ofereceu o restinho do copo. Oh! Queimou minha língua e garganta..., foi coisa ruim mas me alegrou!
O velório continuou, mas como o morto, que estava sendo velado era um boêmio e tinha muitas namoradas, todas elas, ou quase todas, choravam sobre o caixão, beijavam aquele rosto lindo, da cabeça aos pés, pois, ali, para elas, jazia um morto vivo.
O fato mais engraçado foi depois do café com pão. Todos mataram a fome da vida e se ajoelharam para a rezaiada, mas enquanto rezavam e cantavam tristes hinos fúnebres, o caixão do defunto começou a se levantar e a balancear.
O rezador e os que rezavam se levantaram e foram se afastando do caixão, alguns correndo correndo e o defunto ficou sozinho, e o caixão se mexendo e se levantando aos poucos, até tombar para um lado e o morto rolar pelo chão da sala da casa.
Nossa! Que susto para todos os presentes que aos poucos formavam uma fila se adentrando para a sala e deram de encontro com um cachorro, que o finado boêmio muito amava e sempre o acompanhava em suas cantorias e serenatas.
Era um cachorro que estava escondido debaixo do caixão, e que após ter tirado uma soneca, resolveu sair e "cumprimentar aos presentes", cheirando todos os amigos do seu dono, ali morto, com seu cão batendo o rabo.
Enfim, no dia seguinte o grande violeiro, cantor e boêmio foi sepultado e todos que o conheciam e por ele cultivavam grande amizade, diziam: - Era um bom homem! Um homem santo, repetiam outros. Enfim, descansou e agora está nos braços de Deus.
De minha parte, ainda criança, só me focava em Cassiano, o preto de alma branca. O coitado que o conhecera a poucas horas antes, não parava de chorar e secar os olhos com seu lenço axadrezado, e nada dizia. Mas todos ali sabiam que era o que mais sofria a perda do amigo.
Enfim, Zé Dito foi sepultado e o sol continuou a surgir de manhã e se esconder no fim da tarde, os pássaros continuaram cantando, as abelhas e borboletas voando sobre as flores, os dias foram passando com sol ou com chuvas, assim como é a vida de todos nós e o pequeno mundo onde eu morava e vivia, continuou o mesmo.
Só hoje, décadas mais tarde, o meu mundo já não é mais o mesmo. Mudou muito. Um pouco para melhor e outro tanto para pior. Mas para muito mais gente, entre elas eu incluído, a vida continua e continuará até o fim de cada um de nós, no dia e hora que Deus marcou. Igual ao primeiro velório em que estive presente.
Enfim, o meu tempo de criança foi também passando devagar, muito demorado para meu gosto, mas hoje, já na terceira idade, acho que passou depressa demais, e me sinto triste com a morte do cantador Zé Dito, que eu, pra dizer a verdade, pouco conheci.
O que ficou em minha mente e na saudade, foi realmente o negro Cassiano, muito alegre e conversador, que até conversava comigo e outras crianças, sempre rindo com aqueles dentes branquíssimos.
Eu fiquei adulto e deixei o meu mundinho. Ele se envelheceu, mudou-se de seu sítio para a cidade e bem mais tarde soube que havia falecido. Restou-me muita saudade...., saudades também de muitas coisas boas daqueles tempos, que não voltará jamais, que não me esqueço e gostaria de contar delas um pouco mais. Um dia, quem sabe!
Só não quero deixar de contar por ora, na verdade, é o que conheci e vivenciei sobre a vida do velho negro Cassiano e também um pouco de sua família.
O negro Cassiano e sua esposa Mariana, também negra, formavam, pelo que me recordo, um casal feliz que tinha três filhas e nem um filho, e, a casa deles ficava às margens de um córrego.
O sítio do negro Cassiano tinha um capão de mato com umas três ou quatro perobas. Lembro que uma delas estava secando e as outras, embora folheadas, um tanto quanto desfiguradas.
Hoje sei que as árvores perobas sobrevivem mais de setecentos anos, desde que no meio de grandes florestas. Se as florestas forem devastadas e todas elas ficarem isoladas, começará a decadências delas, ou seja, o fim de cada uma, como é o fim de todos os viventes, não importa o motivo.
É com imensa tristeza que hoje eu sei que as perobas, três ou quatro, não bem me lembro bem, no capão de mato de Cassiano, com certeza estão há tempos caídas e se apodrecendo, tendo ao lado Pés de Eucaliptos, explorados pelo Agronegócio.
Como disse, o sítio do Cassiano fazia divisa com o sítio de meu pai e não sei por que não chegaram a ser compadres. Todavia, eu me recordo dos casamentos das três filhas do negro Cassiano. Na verdade, vagamente das duas noivas primeiras. Da caçula, em me lembro bem.
Depois da chegada dos noivos, que foram recebidos com chuvas de arroz e pétalas de flores, houve um comensal de bolos e pães que eram oferecidos em peneiras, na falta de bandejas, não usual naquele tempo.
Que feliz casamento da filha caçula de Cassiano! Que baile bonito, tocado por um sanfoneiro e um violeiro, valsas e arrasta-pés, primeira mente dançados pelos noivos e depois pelo resto dos jovens e demais presentes.
Como bom seria se a vida fosse tão boa assim para nós!
A filha caçula do negro Cassiano engravidou-se durante o namoro, sem que seu pai e sua mãe soubessem, mas como bom pai e boa mãe, eles aceitaram aquele amor com muito respeito. A noiva, após o casamento se sentiu tão feliz na expectativa de ser mãe em breve.
Eu que frequentava a capela naquele bairro rural, ouvia todos os dias sobre o castigo de Deus, as tentações do Diabo, pecados de mentir, falar palavrões, brigar com colegas, desobedecer a pai e mãe, pensar em meninas, etc.
Não esqueço de uma freirinha que certo dia lá apareceu e reuniu a criançada para uma aula de catecismo na escolinha ao lado. No quadro negro, ou lousa, como naquele tempo era chamado, ela desenhou dois corações. Enquanto isso, o padre de batina preta ouvia confissões dos camponeses na capelinha rural ao lado, para depois rezar a missa em latim, de costas para o povo, pois essa era uma época antes do Concilio Vaticano II, que ocorreu dois ou três anos mais tarde.
Bem, voltando à nossa aula de catecismo e da freirinha que chegara com o padre num JEEP, vamos falar das duas almas representada com giz na forma de dois corações. Um dos corações a freira pintou todo de pontinhos brancos com giz. No outro coração ela só fez uma boleta forte de giz e assim explicou:
- A alma do coração com esta marca grande viveu uma vida longa sem cometer pecados mortais, mas um dia antes de morrer, não foi à missa de domingo. O outro coração cheio de pontinhos pequenos de giz é de uma pessoa que também faleceu, mas sempre foi à missa e, quando faltou, confessou este seu pecado mortal e foi para o purgatório e já está no céu, porque morreu apenas com pecados veniais. O outro foi à missa todos os domingos, mas faltou na última, assim morreu com um pecado mortal e foi para o Inferno. Esse é o risco que vocês todos correm, se faltar um só domingo à missa.
Ao ouvir isso, quase morri de medo, mas hoje penso muito diferente, graças a Deus. Que ninguém leve a mal, mas cada um tem o direito de seguir sua crença, ou descrença, e, como humanos irmãos, devemos respeitar, pois um dia seremos julgados pelo mesmo Deus, com seu amor de Pai e Mãe.
Voltando ao casamento da filha do negro de alma branca, o Cassiano, o que eu soube foi o que me contou na cozinha enquanto fazia o almoço, minha mãe querida:
- A Virgínia, filha do Cassiano, morreu durante o parto, coisa muito triste, Deus me livre!
- Mas e o nenê dela? - Foi o que perguntei.
Minha mãe respondeu, com lágrimas escorrendo no rosto:
- O filho dela nasceu bem. Nasceu sem mãe.
Lembro-me que perguntei:
- E a mãe do nenê que morreu, foi para o inferno?
A resposta de minha mãe foi um tapa na minha cara, sem ela me dizer uma só palavra, que jamais esqueci. É a verdade de sua fé de mãe concedida . Ela nunca me disse, mas eu também nunca tive dúvidas do que ela acreditava. No inferno, se é que o tal existe, ninguém que for visitá-lo por Turismo, não encontrará nem mãe, nem pai e sequer filhos amados por Deus, que tem o amor de Pai e Mãe.
Agora quero esclarecer a razão de minha pergunta, muito embora agradecendo a Deus, o tapa que minha mãe me deu na minha cara. Sabem por que?
Tornei-me adolescente, mudei do sítio para a cidade e fui morar com meus avós para cursar o Ginásio. Depois cursei o Normal e me tornei professor Primário.
Naquele tempo não havia concurso, tudo era por indicação política. O meu pai era amigo de um fazendeiro, que era vereador e cuja fazenda fazia divisa com o nosso sítio, ajeitou tudo e eu fui nomeado professor primário na escolinha do Bairro Rural.
Durante dois anos lecionei para uma turma naquela escola rural. Eu morava na cidade e todo dia eu ia num carro, meu velho JEEP, até aquela escolinha.
Dessa escola rural, guardo uma lembrança: Uma menina negrinha veio até mim e me deu um beijinho e me disse:
- Eu gosto muito de você. Nunca se esqueça de mim.
Não mais a encontrei. Nunca mais a esqueci. Amo-a até hoje.
Terminei meu período naquela escolinha rural e passei a lecionar no Grupo Escolar na cidade, sem nunca esquecer daquelas crianças carentes.
Término de uma parte de minha vida revivida, sofrida, mas nunca esquecida.
*Hoje, depois de tanto tempo de vivência e saudade, resta-me recordar de Cassiano. Ou melhor, falar de mim e dele para consigo mesmo.