O COMÍCIO
Estávamos no fim dos anos setenta.
Em razão de circunstâncias de amizade, de repente vi-me num local que diziam ser uma cidade, mas era apenas mais um povoado como muitos que existiam no Estado de Goiás. Hoje a região faz parte do estado do Tocantins que recebeu como herança a cidade-palco desta história.
A maioria das casas do povoado/cidade era de taperas de taipa com cobertura de palha de babaçu. Eram poucas as casas de alvenaria e as rebocadas com mais algum atrativo. O povo andava descalço ou usava alpargatas artesanais feita de couro cru. Parecia um local isolado do resto do mundo, tal era o atraso.
Estava ali e iria participar do comício de um candidato ao cargo de prefeito do lugar, que também era chamado de “ A cidade que Deus esqueceu”.
Os comícios daquela época tomavam conotação de festa e este seria realizado na fazenda do “Veinho”. Caboclo residente na região há muito tempo e que tinha certa influência sobre os vizinhos e habitantes das redondezas. O “fazendeiro” era tido como uma pessoa de prestígio.
O candidato, já acostumado ao jogo da sedução por palavras, era um artista, na arte de enganar e convencer pessoas incautas e simples, especialmente aquelas que moravam no município.
A fazenda de nosso anfitrião e patrono do evento ficava mais de trinta quilômetros da sede do município e, quando já estávamos pertos do local, viajando amontoados sobre um caminhão, soubemos que o Veinho havia falecido de repente.
Ainda me lembro que o candidato, ao saber da notícia, chamou-me do lado e, falando baixo, disse:
- Agora o resultado será ainda melhor.
- Não entendi: Respondi.
Então ele,com a maior cara-de-pau, disse:
- Se houvesse apenas o comício, muitos poderiam não votar em mim, mas como estarei durante todo o velório junto com o povo, todos irão gostar ainda mais de mim, porque eu demonstrarei grande apreço pelo defunto e isso eles não esquecem. Serei o melhor amigo do morto e com isso angariarei a simpatia de todos.
Quando chegamos à fazenda do finado-anfitrião, o candidato havia esfregado os olhos antes repetidas vezes e dirigiu à viúva e disse:
- Dona Maricota, quando eu soube do ocorrido, não parei mais de chorar e vim correndo para prestigiar o meu grande amigo e correligionário.
Ele falava alto para ser escutado por todos e complementou:
- Esta foi a maior perda dos últimos anos para a região. Veinho foi o melhor homem que já conheci.
A pobre mulher, em soluços e abraços das pessoas que chegavam, agradeceu o discurso do candidato que procurava evidenciar todo seu pesar para que ele fosse visto e observado por todos os que estavam no velório. A sala da casa estava lotada de toda espécie de pessoas que haviam acorrido ao local para prestigiar a família do morto e dar um último adeus ao amigo.
O finado era muito querido na região. Durante toda a noite, dezenas de pessoas passaram, perto do caixão e se despediam um a um do pobre e infeliz defunto que, naquele momento, já exalava acentuado mau cheiro.
Não sei se o fedor exalado pelo defunto era devido ao fato de a morte já ter ocorrido há mais de dez horas ou por ele ter falecido durante a lida no campo e do jeito em que o encontraram levaram-no para o velório.
Durante a noite, enquanto a fome apertava e a sede atormentava aqueles que haviam ficado acordados, vigiando um morto que jamais voltaria, as poucas economias da despensa do finado foram consumidas com cafés e bolos de mandioca que eram servidos sempre que aparecia novo visitante. Mais parecia uma festa que um velório.
E assim, durante toda noite, entre um café, um bolo de mandioca e uma dose de pinga, nosso candidato ia passando por todos seus possíveis eleitores e após cumprimentar um por um, falava de sua grande amizade pelo “Veinho”, tentando, com isso, angariar a simpatia dos amigos do defunto.
Quando o sol começou a clarear e os primeiros galos entoavam seu canto, que até parecia um lamento, uma das filhas de Dona Maricota veio informar que a água acabara e precisava que alguém fosse buscar.
Enquanto o candidato se dispunha a buscar água com outras pessoas, eu resolvi acompanhá-los a fim de sair daquele funesto ambiente que cheirava pelo morto e pelos convidados que pareciam ter esquecido de tomar banho.
A inhaca era grande.
Dois vizinhos do defunto e o candidato pegaram cada um uma lata e se dirigiram ao local que eu imaginava ser um rio que passava ali perto.
Quando íamos andando em busca da fonte de água que abastecia a casa, chegamos a um barreiro com água amarelada e que servia naquele momento de ponto de bebida de alguns animais e entre eles uma égua, que entrara no barreiro e naquele momento urinava nele. Era uma espécie de açude que não deveria ter mais que uns cinqüenta metros de diâmetro com água parada e suja.
Imaginando que ainda iríamos encontrar o local de captação de água ali por perto, um dos vizinhos que ia à frente e havia parado disse:
- É aqui.
- Aqui? Indaguei, assustado.
- Sim, qual o problema?
- Nada, é que eu pensei que íamos buscar água em algum rio.
- Moço, a única água que existe na região é esta.
Fiquei calado e apenas observei que quando colocaram a égua para fora do barreiro, vi pequenos animais parecidos com baratas que subiam e desciam na água suja. Além das baratas, milhões de larvas de algum mosquito complementavam a mistura tão “saudável”. Ali era a fonte de abastecimento da família do defunto, bem como o local onde todos seus animais bebiam durante o dia. Dois porcos chafurdavam-se na lama ali perto.
Eu sabia que o grande mal daquela região além da falta de educação, boa alimentação e sanidade, era a falta de água de boa qualidade e mais uma vez tentei me informar. Eu imaginava que eles fervessem a água para eliminar parte dos micro-organismos que pululavam no líquido. Por isso ousei perguntar:
- Como vocês fazem para limpar a água?
- Nóis côa num panu e os bichu fica lá respondeu o outro vizinho que parecia ainda mais matuto que o primeiro.
- E a água fica limpa?
- Claro que fica! Respondeu o candidato.
Ele olhou para mim discretamente e com um olhar pediu que eu mudasse de assunto para evitar uma polêmica que poderia fazê-lo perder seus votos. Acedi e fiquei calado, mas dentro de mim sentia até pena daquele povo pobre e além de tudo ignorante. É lógico que um pano não poderia eliminar as imundices da água.
Depois de encherem as latas e colocarem no ombro, foram andando e iam tentando não derramar o precioso líquido que mataria a sede dos convidados que participavam daquela festa tão estranha. Quando chegamos, a filha mais velha da dona da casa pegou um pouco d’água com uma vasilha e se dispôs a fazer café para todos os amigos do falecido pai. Naquele momento pensei, no sabor do café que eu já havia bebido, deveria estar bem “vitaminado” com tanta mistura, porque a água ia diretamente ao fogo, sem passar por nenhum pano.
Depois que vi o local de captação da água, minha sede acabou por completo e nem mesmo café voltei a beber, eu imaginava estar ingerido parte da urina da égua, além dos outros milhares de organismos e baratas, habitantes das águas.
Quando já passava das sete, resolveram colocar o morto na rede para o cortejo fúnebre. Este hábito é muito comum em locais atrasados onde não existe outra forma de enterro ou mesmo devido à pobreza da família do morto. Naquele caso, a escolha tinha sido do próprio defunto, que dizia ter horror por locais fechados.
Enquanto as pessoas seguiam os tocadores de enterro, as carpideiras iam à frente, entoando rezas que eu jamais tinha ouvido enquanto outras choravam muito mais que a própria viúva e suas quatro filhas.
Antes de entrarmos no cemitério, que ficava pouco mais de dois quilômetros da casa do Veinho, o cotejo parou e com o silêncio apenas se ouvia as rezas das velhas encarquilhadas que em pouco tempo deveriam estar fazendo aquele trajeto, só que dentro de uma rede.
Preocupado com aquela demora e a parada súbita, perguntei o porquê da parada e alguém me disse que estavam aguardando o coveiro. O defunto só podia entrar no cemitério com o coveiro indo à frente do enterro, senão o morto não iria para o céu. Achei ridículo aquela resposta, mas tinha que respeitar as crendices de um povo e apenas balancei a cabeça dizendo compreender.
Quando chegamos ao local do enterro, um dos amigos do defunto entrou na cova e ao sair dela disse em tom de desafio:
- Tá errado, a cova só tem seis palmos e quinze centímetros, faltam dez centímetros.
Ouvi da multidão, um sonoro. Ooohhh!!!!.
Imediatamente o coveiro desceu e depois de quinze cansativos minutos sob sol escaldante, subiu e novamente o vizinho desceu para conferir a profundidade da cova e disse:
- Tá aprovada.
Desceram o corpo enrolado em alguns panos e a rede foi retirada. Não poderia desperdiçar algo tão especial como aquela rede nova. Naquelas paragens, devido ao calor, quase ninguém dormia em camas.
Depois de todas as cerimoniais, despedidas e rogos a todos os santos conhecidos, que deveriam ficar incumbidos de levar o defunto frente ao pai, fecharam a cova.
O candidato não ficou sem deixar o seu recado através de um discurso cheio de interrupções e soluços. Ele era um artista.
Enquanto jogavam terra sobre a cova ouvi um dos amigos do falecido dizer:
-Sabe muié, duranti seis meis , nóis num pode cumê peba.
Era um dos buscadores de água.
Ao ouvir aquelas palavras eu não entendi o que ele queria dizer com aquilo e o candidato logo veio com sua explicação:
- Dizem que o peba come defunto e eles têm medo de comer peba, durante este tempo, porque não sabem se a carne deles está limpa.
- Ah !
Terminado todo o ato fúnebre, voltamos à casa do falecido, onde as filhas deste estavam preparando almoço para todos os convidados. Eu próprio me excluía deste rol, não tinha coragem nem de comer ou beber qualquer líquido naquela casa. A única coisa que bebi foi uma boa dose de cachaça. Tentava matar os vermes que eu devia ter engolido ao beber água antes de ver de onde ela provinha.
No transcorrer do almoço, que evitei de todas as maneiras, alegando estar indisposto, o candidato continuava seus apertos de mão. Quando nos despedimos, eu tinha certeza de que os votos daqueles matutos ele havia conseguido sem prometer nada.
Dentro da cabine do caminhão, eu, ele e o motorista íamos conversando e comentando o caráter daquele povo simples, que além da solidariedade tem um sentimento de amizade muito arraigado.
Na carroceria do caminhão, vinte outras pessoas iam engolindo parte da poeira da estrada que o veículo fazia, cortando aquele lugar inóspito e pobre de campo situado numa região que, segundo eles, “Deus havia esquecido”.
Quando cheguei à sede do município eu estava com o estômago doendo de fome e a garganta ardia como se eu tivesse ingerido pimenta, pois além de seca, a poeira da estrada que também entrava na cabine do velho caminhão ajudava na minha expiação.
Corri para a pensão e antes de qualquer coisa me dirigi ao filtro que continha água, sem antes não esquecer de perguntar de onde vinha a água. A pensão era abastecida por uma cisterna cavada no fundo do quintal e vi que estava coberta.
Comi como um desesperado o jantar que foi servido, ainda bem cedo da noite e depois de toda uma noite acordado com fome e sede, agora eu podia dormir o sono dos justos.
De manhã, bem cedo, saímos rumo ao outro município onde eu havia deixado meu carro e em conversa com o candidato este me confidenciou:
- Meu caro, esta eleição já está no papo, graças à morte do Veinho .
Eu olhei-o e nada falei.
E ele arrematou gritando em tom de galhofa e brincadeira:
- Viva a morte! Que morram outros “Veinhos” para eu fazer meu comício.
Eu ouvi e pensei; “os políticos serão sempre os mesmos em todos os lugares.”
Dias depois retornei à capital para continuar a cuidar de minha própria vida, sabendo, no entanto, que aquele candidato seria eleito, pois tinha o poder da sedução e era um ator de primeira linha.
Depois das eleições, fiquei sabendo que ele havia sido eleito. Embora tenha me convidado várias vezes para uma secretaria do seu governo, recusei alegando compromissos que eu não podia abandonar.
Eu não desejava servir a um sujeito daquele tipo e me servir do cargo para um enriquecimento pouco recomendável e às custas dos pobres e miseráveis habitantes daquele lugar que “Deus havia esquecido e os políticos”
12/11/06-VEM