Ezequiel
O líquido preto escorreu do bule para a xícara. Espirrou um pouco na borda do recipiente recebedor e molhou o pires, sujando-o levemente. Fumegante que estava, exalava fumaça em abundância, inebriando o olfato do bebedor com o aroma concentrado e reconfortante, mas alertando-o para que tivesse cuidado com seus lábios e língua. Juntando o indicador e o polegar em torno da aba da pequena xícara, Ezequiel ainda levantou o dedo mindinho, mania sua, antes de levar o receptáculo à boca. Com o fluido cor de petróleo próximo aos lábios na distância mínima, soprou de leve, mas de maneira firme e longa, sobre ele. Encostou, em seguida, os lábios à xícara, que então esbarraram na poção quente. Era acostumado ao café pelando, gostava dele assim mesmo. Inicialmente, entretanto, deu um gole pequeno, para acostumar. Do segundo gole em diante foi mais fácil, com a língua anestesiada e a xícara cada vez mais vazia. Engoliu a última parte da bebida e suspirou. Lembrava-se do passado. Lembrava-se de sua avó, de sua mãe. Do café coado e forte que faziam, e que passou de uma à outra, e depois a ele. Lembrou-se da infância, do bolo de fubá com goiabada e do leite quente e do açúcar que acompanhavam o café. Agora, já adulto, bebia o safado do líquido como um bicho arisco, preto e puro, sem leite e sem açúcar. E sem bolo. Mas continuava gostando de bebê-lo. Continuaria eternamente a gostar; pelo gosto e pela memória. Uma vez lhe disseram que café tinha um bicho dentro chamado cafeína, que tirava o sono da gente e acelerava o coração. Nunca sentiu nada disso. Arava a terra de manhã, voltava para o almoço, tomava o café quente e puro, e tirava uma soneca merecida antes de voltar ao labor. Mesmo à noite, às vezes, tomava mais uma xicrinha depois do jantar. Ainda assim, seu sono sempre foi o dos justos. Seu corpo tinha grade vigor físico por conta do trabalho e seus músculos eram rijos, e ele continuava possuindo a flexibilidade nas juntas que tinha quando jovem. Dormia e acordava cedo, fazia o desjejum e saía para o serviço na lavoura do patrão. Também tinha sua pequena horta própria, que cuidava com todo o zelo. O seu dia padrão, assim, era longo e estafante, mas com um intervalo razoável para o almoço, momento em que aproveitava para também fazer a sesta. À noite, se banhava e se sentava à mesa de jantar para cear e para ouvir as novelas do rádio. Ezequiel ainda não possuía uma companheira fixa, mas não tinha pressa. Era jovem, e a vida tinha seu tempo para tudo. Em resumo, sua vida era dura e seu trabalho e dinheiro eram suados, mas ele sempre tinha alguns pequenos prazeres que reconfortavam os dias e os abençoavam. O nascer e o pôr do sol, o orvalho da manhã nas folhas e no mato, as noites frias e a lareira que aquecia o coração, as novelas do rádio. O mais simbólico de todos, contudo, seria sempre o café quente e puro, que lembrava o café doce, com leite e com bolo, da sua infância.