Conto das terças-feiras – Espírito magnânimo
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 21 julho de 2020
A falta de condições econômicas para adquirir moradias ofertadas pelo mercado imobiliário formal fez surgir no Brasil comunidades denominadas favelas, onde os próprios moradores constroem suas residências na ilegalidade. O surgimento dessas comunidades se dá, geralmente, pela ocupação e formação de assentamentos localizados na periferia das cidades.
Uma dessas comunidades em Fortaleza, surgiu nas dunas do Papicu, que são depósitos de areias quartzosas médias e, sobretudo, finas, acumuladas pela dinâmica eólica. São consideradas áreas de preservação permanente, e invadidas por famílias vindas do interior, fugidas da seca em suas cidades.
Entre essas pessoas, vamos encontrar um homem de espírito magnânimo, surgido não se sabe de onde, que foi o responsável pelo desbravamento da área, constituída por vegetação diversificada de componentes arbóreos ou arbustivos. O preparo para a demarcação dos lotes exigia que esse senhor subisse e descesse as dunas todos os dias. Como era magro e de idade já avançada, percorria as alamedas já demarcadas, sempre apoiado em uma vara fina de Jurema-preta (Mimosa tenuiflora), arbusto que pode alcançar de quatro a seis metros de altura, de madeira de alta resistência e abundante na caatinga do Nordeste brasileiro. Ninguém sabe como uma vara como aquela apareceu em uma duna costeira.
O certo é que, nas manhãs, antes do acordar do sol, o senhor, vestido de bata e calça branca de algodão, calçando alpargatas com o solado retangular de couro cru e carregando seu cajado, enfrentava as subidas e descida das dunas do Papicu, primeiro para verificar se houvera alguma invasão em suas terras, pois já tomara posse informalmente daquela imensa área sem dono. Segundo, para tomar ciência das quadras já demarcadas no dia anterior, pelos seus 12 apóstolos. Foi assim que nomeara os homens que para ele trabalhavam. Tudo era feito sem muito alarde para evitar que alguém mal intencionado colocasse olho gordo em seu empreendimento. Tinha em mente demarcar, ali, 30 lotes no total, a serem distribuídos para 30 famílias consideradas sem lar.
À medida que o trabalho avançava, as famílias eram alocadas seguindo cadastros adrede preparados. Ao receberem seus espaços construíveis, os beneficiários recebiam a recomendação para não venderem e nem doarem o que acabaram de ganhar. Seu propósito era ali fundar uma comunidade cristã, ordeira e trabalhadora, pois cada família teria que construir o seu próprio barraco a partir de insumos ali encontrados. Os primeiros aquinhoados com um pedaço de terra teriam que construir, também, na parte mais baixa do terreno, um cacimbão, em local já demarcado, para captação de água subterrânea para uso comunitário. Era o ano de 1980. Não havia lei específica que proibisse essa movimentação na área. Mesmo assim, fora a primeira intervenção com destino humanitário de uma área que vivia abandonada, de muito pouco uso.
A partir das 18 horas, durantes os dias de trabalho, quando o manto negro da noite cobria as brancas areias das dunas do Papicu, o senhor benfeitor de inúmeras famílias e seus ajudantes, se recolhiam. Ninguém sabia onde encontrá-los, pois estavam todos preocupados em construir suas casas, cumprindo as recomendações que haviam recebido do senhor do cajado, negligenciando no dever de agradecer a quem propiciou o sonho da comunidade nascente. Dois dias após o início dos trabalhos de desmatamento da área, todas as 30 famílias estavam de posse de seus locais, onde ergueriam suas futuras moradas. Surgiria, assim, a primeira favela no Papicu. Seus proprietários estavam satisfeitos, pois tinham como patrimônio um local para morar. Era só levantar a cabeça e colocar a força dos braços para trabalhar.
Foi aí que um dos agraciados moradores perguntou pelo homem misterioso e seus operários. Todos ficaram surpresos, pois ninguém tinha notícias deles. Alguns saíram pelas dunas à procura de vestígios dos homens que muito os ajudaram. Encontraram, bem no alto da duna mais elevada, um barraco tosco feito de varas e coberto com folhas secas de salsa da praia e capim da praia, com 13 colchões feitos de gravetos e psamófilas (vegetação rasteira regionalmente conhecida como salsa de praia), uma jarra de barro para água e uma bíblia, esquecida, por certo, involuntariamente. Nunca mais o senhor benfeitor, agora cognominado “o homem do pau fininho”, apareceu. A comunidade surgida de sua interferência também passou a ser assim conhecida, Comunidade do Pau Fininho.