O mundo pós corona vírus

Jorge acordou bem cedo. Olhou para o lado e viu o despertador mais adormecido do que ele próprio estivera há apenas poucos segundos. Não entendeu muito bem a razão do despertar, até porque sabia que não tinha por costume acordar naturalmente, sem o auxílio do amigo eletrônico, salvo nos casos em que se levantava para ir ao banheiro urinar. Nestes casos, porém, ia sempre sonolento, arrastando os pés e sem ligar as luzes do quarto e do banheiro, justamente para não despertar por completo. Portanto, foi com grande surpresa que se viu plenamente acordado às cinco e meia da manhã de sábado, ainda que naqueles tempos o sábado fosse idêntico a qualquer outro dia da semana. Os últimos meses, como Jorge já tinha se acostumado, foram de total confinamento dentro da própria casa, como se fosse um condenado por crime menos grave a quem é permitido cumprir a pena em prisão domiciliar. Porém, não apenas a ele tinha sido imposta tal condição tediosa, mas a praticamente toda a raça humana. Jorge tinha recebido a notícia, pouco a pouco, e inicialmente sem dar a devida credibilidade, do surgimento de um novo vírus de gripe, que estava se espalhando rapidamente pela Ásia. “Essas coisas nunca chegam com força aqui”, pensou ele, “é apenas mais uma das inúmeras intercorrências que afligem os países lá do outro lado do mudo”. Não poderia estar mais enganado, porém. Fato é que o tal vírus não apenas se espalhou pelo mundo inteiro, como mudou a rotina de todos as pessoas ao longo do globo terrestre, em especial confinando a maioria daqueles que puderam, em casa. A nova gripe não era tão fatal assim, ainda que muitos já tivessem morrido, mas se espalhava rápido e lotava hospitais de todos os lugares, o que por si só era um perigo imenso. Quem a pegava, ou mesmo quem contraía outras doenças ou se acidentava, ficava com o grande risco de não receber o devido auxílio médico, pois faltava lugar para o necessário tratamento. E este panorama tinha durado meses a fio. Mas Jorge acordou, naquele-dia-em-que-não-entendeu-o-porquê-tinha-se-levantado-tão-cedo-sem-auxílio-do-despertador, sabendo da boa nova há pelo menos quinze dias. O governo de um dos países mais afetados havia produzido, finalmente, a vacina tão sonhada por todos, e havia disponibilizado em larga escala o produto ao resto do mundo. O país de Jorge e, melhor ainda, a cidade onde ele vivia, já estava vacinando a população há mais de uma semana, e quase todos os habitantes já estavam imunes ao vírus. Jorge também já havia sido vacinado, mas, talvez por força do hábito, não havia ainda saído de casa voluntariamente após ter tomado a vacina. Ainda tinha medo. Tinha se acostumado com o tédio, tinha se fechado em suas leituras sem fim de livros pendentes que ia acabando um a um, e tinha se fechado em seu castelo seguro e de paredes que tornavam o vírus impenetrável. Ali ninguém entrava, e ninguém poderia contamina-lo. Acostumou-se a tudo isto, e a perspectiva de um novo cenário em que tudo mais voltaria à normalidade o assustava. O renascimento, dele e do mundo, o amedrontavam. Mas acordar com o sol nascente fez Jorge receber uma segunda injeção, mais metafórica e menos real: uma injeção de esperança. Sentiu o sentimento clichê entrando rapidamente pelas suas veias, tomou um banho curto, colocou uma bermuda, um tênis esportivo, uma camisa branca e limpa, e se perfumou. Saiu do apartamento, desceu o elevador, cumprimentou o porteiro do prédio com um sorriso no rosto, abriu o portão do prédio e saiu. De início, olhou para a rua e não notou nada de diferente dos últimos tempos. Poucas pessoas circulando a pé, e praticamente nenhum carro em circulação. Caminhou um pouco sem destino específico e, com olhar mais atento, entretanto, viu o que olhar apressado havia lhe negado: as padarias do bairro iam, uma a uma, abrindo; alguns idosos faziam a suas caminhadas matinais; donos de cachorros os levavam para fazerem as suas necessidades; a banquinha de jornal estava aberta, e cheirava a revistas novas e café fresco. “Claro”, pensou ele, “ainda são poucos minutos após as seis da manhã. Não vai haver mesmo muita gente na rua neste horário, ainda mais em um final de semana”. O novo mundo, porém, já se mostrava para ele, florescia. Mostrava-se devagar. Em um ritmo de uma manhã recém-nascida de um sábado fresco. O novo mundo, ao menos naquele momento, não trazia ainda o trânsito, conduções lotadas e o estresse do cotidiano. Ele chegava em forma de caminhada lenta e cheiros de pão novo e café fresco. “O mundo sempre foi assim?”, pensou Jorge. “Acho que sim... Creio que eu era quem não acordava cedo para sentir a paz de um novo dia se instalando”. Mas, no fundo, sabia que não era apenas isso. Algo estava diferente, ainda que não soubesse precisar o quê. O mundo voltava ao seu eixo, e Jorge tinha a esperança de que o tempo complicado que a humanidade viveu trouxesse bons ares, novos ensinamentos. Que as pessoas pudessem perceber que o importante na vida era, afinal, as relações humanas, e não tanto os compromissos urgentes e inadiáveis que inventavam para si mesmos, fosse no trabalho, fosse no consumo. Ele sabia que muita coisa, muitos costumes, mudariam. Não sabia o quê ou quais, mas sabia que haveria mudança. E pensar nisso tudo sentindo cheiro de pão francês recém assado, ao invés de comida congelada esquentada no micro-ondas, trouxe um novo ânimo para Jorge. O mundo conhecido tinha acabado, mas renascia. A guerra, a peste, as tragédias vividas, eram infortúnios que chegavam de forma inesperada e arrasadora. Rápidos e cruéis. O renascimento, ao contrário, era lento e cauteloso. Assustado. Prudente. Mas tinha cheiro de café fresco e de esperança doce.

João das Flores
Enviado por João das Flores em 21/07/2020
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