FELICIDADE; PRAZER TÃO RARO!
Cuidar das tarefas domésticas era uma atividade que a estava deixando exausta. Já não tinha tempo para mais nenhuma atividade de lazer, desde que a última doméstica saíra por ter arranjado um emprego melhor.
Não aguentava a sobrecarga de trabalho; no escritório e em casa. Vida de mulher moderna. Que doce engano! Chegava do trabalho e ainda tinha de limpar a casa, fazer comida, cuidar das roupas das crianças, verificar suas tarefas, pô-las para dormir, dar atenção a Jaime, seu marido, que andava meio desligado do mundo, alimentar Cazuza, seu gato siamês, além de limpar seus pelos por toda a casa, enterrar seu cocô, e ainda, organizar as atividades de todos para o dia seguinte.
Ninguém saía da cama sem ela chamar. O café sempre estava pronto sobre a mesa, as roupas de Jaime, impecáveis, e o material escolar das crianças, já arrumado. Eliane, perguntava-se “Meu Deus, quando terei tempo para mim. Estou me sentido um utensílio nesta casa! Pareço uma máquina que programa tudo para todos ficarem satisfeitos e felizes. E eu? Quem se importa com o que penso ou sinto?” E os dias passavam na mesma rotina enfadonha e cansativa.
Reclamou com o marido e ele achou que ela estava exagerando, como sempre. Jaime não interferia em suas decisões em casa, mas não a ajudava, exceto cuidar do carro e levar o lixo. Às vezes, achava que o casamento também tinha virado rotina e que Jaime já não a amava. “Claro, tô sempre parecendo uma bruxa descabelada.”, pensava desanimada.
Haviam pegado uns dias de folga por conta de alguns trabalhos extras que fizeram no escritório, trabalhavam juntos em uma empresa de contabilidade, e Elaine planejara organizar a rotina da casa e tirar um dia inteiro, para si, para fazer uma massagem relaxante e ir ao salão de beleza, cuidar das unhas, que estavam quebradiças, e do cabelo, que mais parecia com palha de milho seca. O louro estava desbotado e sem brilho, pois há três meses não retocava a tintura. Faria até uma depilação mais caprichada, afinal, merecia, agora que tinha tempo para isso. “Quem sabe Jaime saia da apatia.”
Era a semana antes do Natal, e começara mal. Já na segunda-feira pela manhã, Cazuza aparecera com um rato esganiçando entre os dentes e espalhando o sangue do bichano por onde passava. Até que Eliane conseguiu pegá-lo para dar um banho e acabar com a festa.
Estava enterrando o rato no fundo do quintal, quando as crianças chegaram do passeio com os filhos da vizinha. Haviam ido à nova sorveteria, na esquina da igreja. Luana, de cinco anos, estava lambuzada até no cabelo e Maria Clara, de nove, havia caído e machucado o joelho. Foi só um arranhão, mas parecia que iria morrer de tanto chorar, ainda mais quando olhava para o machucado e via um fiozinho de sangue que escorria. E Eliane, paciente, encaminhava uma ao banheiro, para tirar a meleca do corpo todo e tentava acalmar a outra, limpando o ferimento e fazendo um curativo.
“Que horas são? Se não me apressar com isso, perco o horário da massagem e do salão. E onde está Jaime, para ficar com as meninas?”. Elaine ficava cada vez mais nervosa, e foi ajudar Luana no banho. Assim, aproveitaria para tomar banho também.
Ao sair do banho, encontrou a casa toda cheia de penas. Acabara de limpar, passara a manhã na faxina! Era demais! Cazuza trouxera agora um passarinho, que jogava e corria atrás para pegá-lo, espalhando suas partes pela casa toda. Eliane achou que teria um infarto, faltava só meia hora para o horário que marcara no salão.
Finalmente, Jaime chegou. “Desculpe o atraso, meu amor. Fui com o Clóvis ver um carro que ele quer comprar.” E, finalmente, estava ali para ficar com as crianças. Maria Clara já havia se acalmado e estava jogando videogame. E Luana, foi ver desenho da Peppa Pig, na TV. “Por favor, Jaime, limpe essa bagunça que o gato fez. Tô atrasada.” E saiu, sem esperar a resposta do marido. Perdeu o horário, teria que deixar para a quinta-feira.
Finalmente, na quinta-feira, chegou ao salão e começou sua sessão de recauchutagem, sim, recauchutagem, porque parecia um pneu velho, que nem adiantava tentar recuperar. Mas, Claudinha era uma “expert” em donas de casa desleixadas e era capaz de realizar verdadeiros milagres, depois de algumas horas. Encaminhou Eliane à sala de massagem, onde Juliana a aguardava, com uma música clássica para deixa-la mais relaxada e iniciou seu trabalho.
Eliane chegou a sentir uma leve tontura, quando Juliana começou a massageá-la, sentindo que, junto com ao relaxamento dos nervos, estava descarregando uma imensa energia negativa quer a rodeava, mais alguns problemas decorrentes da rotina desgastante que levava. Acabou dormindo e, quando Juliana terminou a massagem e a chamou, não identificou de imediato, o local onde se encontrava, tal era seu esgotamento, físico e mental.
Claudinha já estava esperando para a depilação e, depois, as unhas. Pintaria de vermelho vivo, para realçar seus dedos finos e longos. Aos trinta e cinco anos, o viço de sua pele não havia enrugado. “Como é bom poder cuidar um pouco de mim”, disse à Claudinha. Ao que ela respondeu “Você é uma mulher tão bonita, só precisa de um toque de feminilidade, que está escondida nesse seu papel de mãe e esposa perfeita.” Eliane refletiu, “Realmente, estava um tanto desleixada com a aparência.” Claudinha, levantou-se e disse “Agora, esses cabelos. Vamos, isso está horrível!” E pintou-os e fez um corte mais moderno, que realçava o rosto oval de Elaine, deixando-a rejuvenescida.
“Que pena, tenho de voltar ao ‘lar, doce lar’, meninas!” E saiu do salão, satisfeita com a nova mulher que vira no espelho. Jaime teria uma surpresa ao vê-la. Mas, ao chegar em casa, não havia ninguém. “Onde terão ido?”, perguntou-se. Tudo estava arrumado, que nem acreditou no que viu. Os três em casa eram sinônimos de bagunça, não de arrumação. “O que terá acontecido?” Deitou-se no sofá e pegou um livro que há tempo queria ler. Ainda nas primeiras páginas, adormeceu. Já escurecera, quando acordou e a casa continuava deserta. Nada de Jaime e as meninas. Ligou a TV parta distrair-se.
Mais duas horas e nada. Jaime nunca saía sem avisar e Elaine começou a preocupar-se. Ligou, mas o celular dava fora de área. De repente, assustou-se ao ouvir uma buzina estrondeante em frente à casa e saiu ver o que estava acontecendo.
Chegaram. E que alegria! Jaime estava com roupas de Papai Noel e as meninas com enormes cabeças de rena e uma roupa larga, com manchas marrons, puxando-o pelo braço. Ele trazia nas mãos as chaves de um carro, um Sedan azul marinho, que estava estacionado em frente à garagem. “Querida, nosso presente de Natal! E já que está tão linda, vamos comer uma pizza no Mixer’s”. Elaine custava a crer no que via. Não imaginava que Jaime estivesse planejando comprar outro carro, o que tinham era seminovo. “Querida, sei que você tem estado um tanto ocupada, com a casa, com o trabalho, com as meninas, e comigo. Vamos relaxar um pouco, estamos de férias e as meninas estão tão animadas. É a semana do Natal”.
Luana e Maria Clara tiraram as cabeças de rena e entraram logo no carro. No restaurante, exageraram nos pedaços de pizza e chegaram em casa resmungando de dor no estômago. Elaine fez um chazinho de camomila e colocou-as na cama. O dia havia sido agitado, para todos.
Jaime a esperava no sofá, com duas taças e uma garrafa de vinho chileno, que haviam comprado para uma ocasião especial. Assim que a viu, enlaçou-a pela cintura, beijando-a, ternamente. “Há quanto tempo não temos uma noite só nossa, meu amor. E você está, especialmente, linda, hoje!”. Elaine concordou e disse, envergonhada de seus pensamentos “Achei que já não ligasse mais para essas coisas.” Brindaram à felicidade, e Jaime a olhou com tanto amor, como quando se conheceram. Fizeram amor no tapete da sala, nem se lembraram das meninas, que poderiam aparecer a qualquer momento. Foi uma noite mágica! Elaine esqueceu-se do cansaço dos últimos meses. Estava quase amanhecendo, quando acordaram de súbito, e foram para o quarto. Não precisariam acordar cedo para trabalhar, podiam dormir até mais tarde.
A surpresa veio ao saírem do quarto. Havia garoado de madrugada e Cazuza estava na soleira da porta, todo encharcado, esperando para entrar. Assim que Elaine abriu a porta, ele entrou como um foguete e rodopiou pela casa toda. Era patas de gato pra todo lado. As meninas acordaram com a barulheira e começaram a perseguir o animal, causando mais confusão ainda.
“O que fazer com essa família?” Pensava Elaine, rindo. Parece que as coisas saíram da rotina. Arrumou a mesa para o café da manhã, com torradas, geleias, iogurte, frutas, como as meninas gostavam. Preparou até o café de Jaime, bem forte, sem açúcar, como ele gostava. Sabia que depois do Natal tudo seria uma correria novamente. Então, era melhor desfrutar da companhia do marido e das meninas e divertir-se.
Planejaram sair cedo, para inaugurar o carro novo. Luana e Maria Clara puxavam o pai pelo braço, enquanto Elaine arrumava uma cesta com algumas guloseimas. Iriam até à Vila do Papai Noel, que ficava em uma cidade a uns 40 km de distância.
Chegaram ao carro e, mais uma do Cazuza. Havia feito xixi sobre o estofamento do banco do motorista. Jaime ficou possesso e espantou o gato com a sombrinha de Maria Clara, que estava segurando. Como iriam passear com o banco molhado e fedendo? Acabou-se a alegria das meninas. Decidiram que iriam dar um passeio de “bike”, enquanto deixavam o carro no posto de lavagem. O parque perto do lago municipal era um bom lugar para isso.
Foram ao depósito, nos fundos da casa, para ver se as bicicletas estavam em ordem. A de Luana estava com o pneu murcho e Jaime teve de arrumar. Levaram a cesta de comida que Elaine arrumara para a viagem frustrada, pois era quase meio-dia e se esperassem até o almoço, perderiam muito tempo.
Passearam pelo parque até às duas horas da tarde e fizeram um “piquenique” improvisado. Elaine distribuiu os lanches sobre uma toalha no chão. Começaram a comer e todos riram da farelada que se espalhou pelo chão, quando as formigas “invadiram a festa”. Elaine recolhia tudo, às pressas. Passou o sorveteiro, o vendedor de algodão doce, o vendedor de balões de hélio e as meninas queriam tudo. As trapalhadas de Cazuza serviram para alguma coisa, afinal. Há mais de um ano que não tinham um passeio em família, com a agitação do trabalho sempre em primeiro lugar.
Jaime e Elaine perceberam o quanto estavam deixando de lado as pequenas coisas que fazem com que a felicidade seja um prazer tão raro, e ao mesmo tempo, tão gratuito. A felicidade que viam nos olhinhos das meninas não tinha preço. Eles mesmos sentiam-se, novamente, enamorados. As meninas estavam crescendo. Em breve perderiam os encantos da infância e eles perderiam o tempo precioso das descobertas e das aventuras delas.
Era véspera de Natal e, realmente havia o espírito natalino no ar, espalhando seus ensejos de boas novas e alegrias compartilhadas. Elaine e Jaime sentiam renovarem-se os sonhos que compartilhavam há tanto tempo e que, nas atribulações do dia a dia, haviam ficado esquecidos.
Chegaram em casa à noitinha. As meninas largaram as “bikes” na calçada e foram ao encontro de Cazuza, que parecia um bibelô, à espera dos donos, no portão de entrada, com uma cara de quem havia aprontado mais uma e estava tentando se desculpar. Fizeram um cafuné nele e correram para o banho. Elaine as seguiu.
Ao se aproximar da porta dos fundos, para guardar as bicicletas no depósito, Jaime pisou em um montinho nada cheiroso. E, ao olhar em volta, percebeu que Cazuza também estivera no jardim e os vasos de plantas teriam que ser replantados. Nada estava como sempre, mas tudo estava em ordem!
(Conto publicado no livro Fragmentos, de 2016)
Cleusa Piovesan
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