230 - Divórcio
Bateu a porta com força, gritou ao cão e afugentou o gato surpreendido no seu sono no cesto das lãs. Furioso, olhou à volta e os pratos que aguardavam regresso ao aparador foram, um a um, quebrados. Havia destroços pela cozinha e pela sala de estar. A caixa de Limoges e o bule da Vista Alegre feitos em cacos eram a cor que ficara no escuro da estante. A seguir, rasgado em tiras o lenço que trazia, chorou alto um pranto soluçante e ficou espalhado no sofá como se estivesse morto. Quando ela voltou, mãos na boca e olhar esgaziado, começou, sem dizer nada, a repor a ordem no espaço. Aprendeu cedo a viver com a violência do marido, suportou-a até ver os filhos autónomos e agora, cansada de não ter opinião válida, de sofrer calada, pedira o divórcio. Previra a reacção dele, assustara-se ante a hipótese de lhe fazer frente mas reuniu coragem e estava ali, firme, olhar magoado, determinada a fazer valer os seus direitos. Dissera ao advogado que o deixasse escolher sempre as soluções, o lote dos bens, a saída ou a permanência na casa comum. E hoje, pela primeira vez em décadas de casamento, lendo a sentença do Tribunal, percebeu que acabara de perder tudo, que nada mais faria sentido se ela saísse da sua vida. Preferia matar-se, concluiu antes de jogar a cartada final: - Desiste, pediu em lágrimas, segurando-lhe as mãos geladas. Morrerei sem ti, acrescentou. E a resposta veio serena: - Não.