COM H
Maria abriu os olhos naquele sábado. Ao mirar o dia 18 no calendário do celular, lembrou que estava há 3 meses sem abraçar os amigos e a família. Tal intimidade só tinha com o Bingo, o cachorro da família cujos pêlos macios como algodão eram mais irresistíveis que brigadeiro de panela. Só não esquecera da sensação de um abraço porque aquela bolinha de rabo chacoalhante estava sempre ali entre os braços da Maria.
Não eram problemas familiares que impediam o abraço. Havia uma ameaça tão grande, que já havia ceifado quase 600.000 vidas no mundo naquele 2020. Quantas lágrimas foram derramadas por um vírus tão frágil, a ponto de ser morto com sabão e água, quanto mortal. Quantas piscinas de lágrimas? Pensou Maria ao expulsar esse pensamento.
Há 3 meses, Maria acordava, e com remela ainda no rosto, trabalhava de casa mesmo. Quando tinha uma reunião, penteava o cabelo e colocava um casaco sobre o pijama amanhecido e amassado. Ali, na casa da família, era refúgio e nenhum vírus ameaçaria a saúde dos seus.
Mas naquele dia, Maria tinha um plano diferente. Ia sair, mostrar que era forte. Uns amigos a convidaram para distribuir comida a pessoas em situação de rua. Claro, não poderia deixar de ir. Sentiu o chamado no seu coração, mais forte que o medo de ser contaminada e trazer o vírus à sua pequena redoma que chamava de casa.
No horário marcado estava ali, entre amigos. Carros abastecidos com marmitas, água, pão, doce, maçã e até ração para os – talvez únicos – amigos de pêlos daquelas pessoas que viviam nas ruas do centro da cidade. Para mais segurança, todos usavam máscaras e luvas hipoalergênicas. Uma das amigas distribuía esguichos de álcool como gotas de proteção mágica.
E assim iniciaram a tarefa de distribuir o fim do buraco do estômago, pelo menos naquela noite.
Uma pequena multidão se formou.
Maria se sentia observada por outra mulher, sem reação. Trocaram olhares. A mulher nada falou, nem deu as mãos para receber a comida. Maria sentiu algo ali. Aproximou-se daquela senhora de cabelo já embranquecido, pele queimada do sol que devia arder tanto quanto aquele olhar.
Perguntou se estava tudo bem.
Silêncio aterrador, rompido segundos depois com uma fala que fez com que o coração de Maria pulasse até a garganta: “Minha filha, essa epidemia tirou meu trabalho e não me restou nada, tive que sair do barraco que alugava porque não restava nada para pagar as despesas, só a rua me aceitou. Desde então, vago por aí, atrás de comida, que às vezes vem, mas a fome da minha alma não consigo saciar. Há 3 meses não sei o que é um abraço. Não sei o que é ser gente. Não sinto um coração.”
O cérebro de Maria, em frações de segundo trouxe tudo que havia lido sobre prevenção, distanciamento, isolamento social, contágio, mortes, lembrou até da vizinha que havia partido vítima dessa terrível doença. Lembrou da mãe, do pai, do Bingo. Só o Bingo era um abraço seguro, pensou.
Seu cérebro rapidamente deu o comando: explique sobre os riscos, sobre a pandemia, sobre as mortes, distribua a comida e chame o próximo. Mas o coração foi mais rápido. Estava mais perto das cordas vocais ou tinha mais força que a razão? Acho que nunca saberemos.
“Vem aqui que tenho um abraço para você!” E se abraçaram. Ali, no refúgio seguro criado no meio da praça, só para as duas.
Longamente.
Até que os corações se encontraram no mesmo ritmo.
Ali, sentiu-se Ser Humano de novo. Quem? Maria? Não. Ambas.
Depois daquele momento, Maria não era mais a mesma. Voltou a ser a mesma. Que antes.
Chegou em casa, banhou-se como manda o figurino, penteou o cabelo, passou o perfume suave de jasmim, escolheu a máscara mais bonita e aproximou-se da mãe. Silenciosamente a abraçou. Ali, mais um ser sentiu-se Humano de novo. Com H. E o Bingo estava ali, mirando e esperando a sua vez.