A MISSA DAS DEZ DO PADRE GERALDINHO.
São José da Tapera. O nome da cidade era esse devido a primeira casa dali, a tapera do fundador, devoto de São José. Povoado de seis mil habitantes, incrustado no interiorzão paulista. Uma cidadezinha rodeada de fazendas e banhada pelo rio das Onças. O rio tinha esse nome pois o velho Simeão sapateiro, primo de terceiro grau do finado Zé Norberto, fundador e primeiro prefeito da localidade, jurava de pés juntos ter visto três onças tomando água naquele riacho. Só ele viu as ditas cujas mas o nome pegou. Virou o rio das Onças. Cidadezinha com cadeia e delegado mas só com ocorrências de roubo de galinhas. Um armazém de secos e molhados. Dois bares. Uma farmácia. Uma barbearia. Um açougue. Uma escola. As professoras vinham da cidade vizinha. Uma sorveteria. Um pequeno cemitério a um quilômetro da vila. Uma igreja matriz no centro da praça principal. O padre Geraldinho, italiano de Palermo e um dos primeiros sacerdote do lugar, até tentou mudar o nome da cidade mas não teve sucesso. Um padre das antigas, com a batina toda preta com botões enormes. O vigário italiano formou o primeiro time de futebol da cidade, o Grêmio Tapereense. O uniforme igual ao da seleção brasileira porém o bom futebol passava longe. A casa paroquial era alugada. Dona Zulmira era a cozinheira e também secretária da paróquia. A renda de três quermesses resultou na compra de um meio de transporte para o padre se locomover para rezar as missas nas fazendas: um cavalo baio e uma charrete azul. Na matriz de São José, o padre instituiu três horários de missas nos finais de semana: sábado às dezenove horas, domingo às dez da manhã e às dezenove horas. A missa do sábado era mais frequentada pela juventude. Cumpririam a obrigação religiosa e depois sairiam pra ferveção, podendo dormir até mais tarde no domingo. A missa das dez horas do domingo era chamada de missa das crianças pois se dava após as aulas de catequese. Era rezada as oito mas o italiano mudou o horário para poder dormir mais um pouquinho. A missa da noite do domingo era rápida e com pouca gente na assembléia. O italiano batia cartão no Clube dos Cafeicultores, onde o jantar dançante iniciava exatamente às vinte horas. Com o tempo o povo foi entendendo o sermão do padre, um português macarrônico e confuso. A missa da dez era a melhor de todas. Era a que bombava e rendia fofocas pra semana inteira. O povo que trabalhava junto, a semana toda na roça, se reencontrava na cidade mas era como não se vissem há anos pois era abraço pra cá, abraço pra lá. Um converseiro danado de bom e animado. Parecia que eram todos parentes. A molecada pedindo a bênção até pra quem era estranho!!! Era um festival de carroças e carros de fazendeiros. Os cavalos amarrados nas cercas. Algumas caminhonetes dos fazendeiros mais ricos da região. O altar bonito, decorado com flores por dona Nazaré. Homens gordos e bigodudos com suas proles abastadas. Os mais ricos ocupavam a atenção do vigário e os primeiros bancos da capela. Era uma puxação de saco tão deslavada e ordinária capaz de fazer corar a imagem do padroeiro São José, o pai humano de Cristo, Nosso Senhor e Redentor. Os comerciantes e os outros menos ricos ocupavam os demais lugares. Os violeiros ficavam meia hora afinando os violões, testando a paciência e os ouvidos da gente. Bem que poderiam trazer os instrumentos já afinados de casa mas parecia que queriam mostrar a todos que sabiam tocar. Dona Chiquinha cuidava do som. Testava os microfones dando um forte sopro neles. Era hilário. A maioria do povo ficava de pé, junto as paredes da igreja. Um monte de gente ficava do lado de fora da igreja. Eu e meus amigos ficávamos numa das janelas. Os pobres, esses entravam só na hora da eucaristia. Comungavam e saíam. O padre era alto, um misto de Tarcísio Meira com Antônio Fagundes. As solteironas ficavam ouriçadas com a beleza do homem de Deus. Um desperdício, segundo umas mais afoitas. Algumas moças até babavam ao abrir a boca pra receber a hóstia das mãos do piu bello bambino. Os homens vestidos de terno, gravata e chapéu. Um sol de rachar mamonas. O suor escorrendo e o sermão do italiano que não terminava. Demorava exatos quarenta minutos, quase um tempo de uma partida de futebol. Os coroinhas paramentados. Um ou outro cochilando. As mulheres bem vestidas. Era um desfile de moda. Parecia que estávamos na Europa. Dona Fátima, exímia costureira, reproduzia os vestidos das atrizes das novelas. Era um tal de uma cochichando no ouvido da outra e apontando o vestido da fulana e da ciclana . As fofoqueiras de plantão tinham assunto pra semana toda. Há um ditado que diz que nos primeiros dez minutos de um sermão é Deus que fala, nos outros dez minutos é o padre que fala mas após isso, é o demo que fala. O padre Geraldinho não ligava pra isso. Após dez minutos falando do evangelho, o padre começava a falar das benfeitorias dos fazendeiros, das obras da creche, do telhado do salão paroquial, dos estragos da chuva. Na metade do sermão, falava das suas gaiolas de passarinho, criticava a novela da Tieta mas sabia, de cor e salteado, o nome de todos os personagens. Quando ele falava da Inter de Milão era sinal que o sermão estava chegando nos dez minutos finais, onde repetia o que tinha falado do evangelho. Virava um mercado de peixe na missa. Conversas paralelas, moleque chorando, bêbado, cachorro no altar, velho querendo água, casal de namorados se beijando, esposa beliscando o marido. O festival da tosse. O padre erguia a voz. Um sistema de som péssimo. A tradicional chiadeira. Microfonia. Alguns saiam pra fumar na pracinha. Prefeito, vereador, comerciantes, o delegado, a dona da farmácia, o barbeiro, o gari, os estudantes, os roceiros, os pobres, todos na fila da comunhão. Todos com cara de santos e imaculados. A paquera rolava solta, discretamente é lógico. A criançada votava na mais bonita da missa. As orações. As imagens de santos. O cheiro de vela e de incenso. Os violeiros. A hora da coleta. O sacristão narigudo. O saco vermelho passava de mão em mão, recolhendo dinheiro, geralmente para obras. Os avisos finais. O padre Geraldinho inovou e passou a apresentar os recém nascidos da cidade. Pegava os bebês nos braços,para desespero das mães. Vai que ele derruba o nenê no chão?!!!?!!! O padre desistiu da idéia após levar uma sonora mijada do bebê de minha prima Heleninha. Após a missa, o padre cumprimentava a todos na porta de saída da igreja, com suas mãos enormes. Nunca vi outro padre fazer isso! Um belo gesto. A molecada se divertia com o sorvete ou a pipoca na praça. Era tradição. O passeio das moças em volta do coreto. O almoço se dava no barracão de festa, ao lado da matriz. Panelões de galinhada saborosa, feita pelas senhoras voluntárias do grupo de oração. Gente da cidadezinha e das fazendas, unidos num almoço comunitário. O jogo de malha e de bocha. As mesas da praça ocupadas pelos jogadores de truco. O jogo de futebol do time ruim da cidadezinha mas que, para nós crianças, era o melhor do mundo. Soltavam rojões quando o time entrava em campo. A molecada ia tomar banho de rio. Quando a televisão colorida chegou na vila foi um acontecimento e tanto. O dono da tevê colorida, o padre italiano. A sala da casa paroquial cheia de gente vendo a copa de 82. Duro foi aguentar a zoação do padre pois o Paolo Rossi fez três gols e tirou o Brasil do Telê da copa da Espanha!!! Eu tinha doze anos quando minha família se mudou do lugar. Cinco décadas. Nunca mais voltei. Nunca mais comi uma galinhada tão boa. Bons tempos. F I M.