A Praça Chile e Meu Medo
O início era na Praça Chile, o encerramento se dava na Praça Chile. Nada de horário rígido. Quem chega na frente bebe água limpa: Valia essa regra.
Aquele corpo sem vida já estava lá. Pode ser que o assassino também ainda estivesse no local. Encarar o medo era o preço para se beber da boa água, ou seja, chegar primeiro e escolher o melhor.
A não ser na questão do levantar-se ou do deitar-se, nenhuma diferença fazia. A madrugada era a mandante, dela não se escapava.
Passados uns pares de anos, deparei com o menino, não mais menino. Passou a trabalhar em uma das lojas onde diariamente eu comprava. Parecia muito tranquilo, bem encaminhado na vida, não transparecia trauma algum; isso me intrigava. Ninguém que não soubesse, iria imaginar estar ali alguém que nunca conheceu seu pai e que testemunhou o encontro do corpo de sua mãe, com o lenço que a estrangulara enrolado no pescoço.
As viagens curtas eram detestáveis, Fazenda da Juta era ruim; Capuava, horrível. As longas pertenciam aos antigos; vantagens ilusórias, conseguidas com a permanência no emprego. As viagens intermediárias tinham os seus filés e os seus ossos. Gostei de ter conhecido o Parque IV Centenário, no seu comecinho, aquelas casinhas aqui acolá, o ponto final quase no meio do mato; era a minha preferência. Gastava em segundo, do Jardim Tietê, em São Matheus, o Largo de Santa Adélia, repleto de terrenos baldios.
Tanto fazia, se o início era na madrugada; levantar era a parte mais fácil; difícil era percorrer mais de dois quilômetros de muito medo, para chegar lá onde o ônibus especial passava pegando os motoristas e cobradores para levar para a garagem na Praça Chile. Descer a Aclimação, a Ingá e chegar na Carijós, que findava na Vila Linda, limite da cidade e mata, às três da madrugada, a coragem vinha não sei de onde. Quem perdia o especial ficava com as viagens curtas.
Tanto fazia, se o final era na madrugada, dormir era só um detalhe; com uma boa dose de sorte, conseguia-se alcançar lá na Rua Oratório, no Bangu, o último ônibus que vinha de São Paulo, aí então seria somente um quilômetro de medo; sem essa sorte restava o especial que iria me deixar lá na Carijós; ou então terminar a noite na garagem em um banco de ônibus a céu aberto. Terrível!
Para a Praça Chile eu ia, da Praça Chile eu voltava todas as madrugadas. Eu não me lembro se eu ia ou se voltava naquela madrugada, mas sei que passei e vi, como via todas as vezes, os vultos daqueles pés de bananas; o corpo dela estava lá no barranco, eu não vi porque não era visível do meio da rua.
Aquela foi minha última madrugada de ida ou de vinda da Praça Chile; não por minha vontade, mas por insistência de minha mãe. Eu tinha 14 anos.